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Autoestrada 80, a rodovia da morte

Um dos mais brutais massacres da história de guerra ocorreu ao longo da Rodovia 80, uma rodovia de seis faixas que sai da Cidade do Kuwait e atravessa as cidades fronteiriças de Abdali e Safwan, seguindo até Bácora, no Iraque. A cerca de 32 km a oeste da Cidade do Kuwait, esse rodovia se tornou o palco de um sangrento massacre, que lhe valeu o título de Rodovia da Morte.

Em fevereiro de 1991, depois de um mês e meio de combates entre o exército iraquiano e a coalizão da ONU, liderada pelos americanos, a Guerra do Golfo caminhava para o desfecho previsível. O exército de Saddam Hussein, apesar de contar com um efetivo de meio milhão de soldados e conhecer a região como ninguém, não seria páreo para as tropas formadas por militares de 32 países, enviados para as areias do oriente médio a fim de libertar o Kuwait, e, é claro, assegurar a posse do precioso ouro negro, que jorra abundantemente naquelas terras.

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Na noite do dia 26 para 27 de fevereiro, um dia antes da guerra terminar, civis e militares iraquianos se retiravam do Kuwait. Eram os últimos invasores a deixar o país que o ditador Saddam Hussein havia anexado sete meses antes. Naquela madrugada, o comboio em fuga foi atacado e dizimado por aviões e forças terrestres americanas, na última ofensiva da coalizão militar do Ocidente. Um dia depois, em 28 de fevereiro de 1991, George H. W. Bush, presidente dos Estados Unidos, daria a ordem de cessar fogo.

A estrada, um ponto estratégico na rota de saída para o litoral e a principal via de comunicação com o Kuwait, se tornou um autêntico cemitério de veículos, um cenário digno de qualquer filme pós-apocalíptico. Os iraquianos, dirigindo todo tipo de veículos, muitos deles roubados do Kuwait, voltavam para o seu país quando os aviões americanos atacaram a dianteira e a retaguarda do comboio, criando um gigantesco engarrafamento. Outras fontes afirmam que fuzileiros navais americanos, haviam anteriormente bloqueado a rodovia com minas antitanque e esperaram a chegada da caravana em fuga. Os Estados Unidos confirmaram o ataque aéreo e a intervenção das forças terrestres, contudo, não especificaram os métodos da operação.

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A verdade é que, com os iraquianos encurralados, sem nenhuma possibilidade de reação, começou a ofensiva com força total. O ataque brutal resultou na destruição de entre 1.800 a 2.700 carros, caminhões, ônibus e tanques, deixando os seus restos fumegantes espalhados ao longo de vários quilômetros da rodovia. O número exato das vítimas, cujos corpos foram carbonizados grotescamente, é desconhecido. As estimativas variam conforme as fontes, chegando a conclusões tão díspares quanto 300 a dezenas de milhares de mortos. Muitos invasores iraquianos conseguiram de fato escapar atravessando o Rio Eufrates e a inteligência americana estimou que entre 70 000 a 80 000 militares inimigos conseguiram chegar a Basra.

Os ataques americanos contra as colunas iraquianas ocorreram na verdade em duas diferentes rodovias: entre 1 400-2 000 veículos foram abandonados na Rodovia principal ou Rodovia 80 ao norte de Al Jahra e entre 400-700 na menos conhecida rodovia até Baçorá, a principal fortaleza militar do sul do Iraque. Os veículos que conseguiram sair do congestionamento e continuaram a seguir pelo norte, foram constantemente alvejados um a um. Os destroços encontrados ao longo da rodovia consistiam em poucos veículos militares (cerca de 28 tanques e outros blindados). A maior parte era de veículos civis como automóveis e ônibus. Dentro dos mesmos havia muitos produtos de saques no Kuwait.

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Na Rodovia 8 indo para o leste, as forças iraquianas tinham se concentrado tentando se organizarem para a luta ou simplesmente fugirem. Ali estava a elite da Primeira Divisão Blindada da Guarda Republicana do Iraque (Divisão Hamurabi), que deveria se espalhar por uma grande área para lutar contra pequenos grupos de americanos em terra, oriundos do Nono Batalhão de Artilharia e um batalhão de helicópteros AH-64 Apache comandados pelo general Barry McCaffrey. Centenas de veículos iraquianos, a maioria militar, foram sistematicamente destruídos em pequenos confrontos ao longo de 80 km, tanto na pista como em pontos de travessia do deserto.

Esse confronto, conhecido pela imprensa e público apenas duas semanas depois, ainda permanece obscuro e a maioria das imagens de devastação, atribuídas ao bombardeio da Rodovia 80, na verdade são da Rodovia 8. O Projeto para Pesquisa de Defesas Alternativas estimou o número de mortos entre 300 a 400 ou mais, o que elevou o número total nas duas rodovias para 800 a 1 000 mortos. Uma grande coluna remanescente da Divisão Hamurabi e que tentava recuar para Bagdá, também foi combatida e destruída poucos dias depois (2 de março), já dentro do território iraquiano, pelas forças do general McCaffrey, numa controversa ação pós-guerra conhecida como Batalha de Rumaila.

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Quando a luz do dia permitiu ver a magnitude do massacre, as primeiras vozes de protesto se levantaram contra a operação. Alguns jornais falaram em carnificina, vários jornalistas e associações de direitos humanos acusaram os Estados Unidos de violarem a Convenção de Genebra, e que, portanto, deviam responder por crimes de guerra, uma vez que as vítimas eram civis e militares, no que parecia claramente uma rendição e uma batida em retirada.

A ofensiva da Coalizão na Rodovia 80 é questionada e ponto de controvérsia, com alguns observadores afirmando que as forças foram desproporcionais e que os iraquianos se retiravam do Kuwait (em atenção tardia a Resolução 660 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 2 de agosto de 1990), além do que as colunas traziam kwaitianos capturados (aparentemente para serem usados como reféns) bem como civis refugiados que incluíam mulheres e crianças (a maioria de famílias pró-Iraque, militantes da Organização para Libertação da Palestina e colaboracionistas kwaitianos que tinham saído do país quando da Expulsão dos Palestinos do Kuwait no início de março).

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O procurador geral americano Ramsey Clark alegou que os ataques violaram a Terceira Convenção de Genebra, que determinou a ilegalidade de assassinos de soldados que não estão em combate. A lei internacional determina expressamente que forças militares em retirada são alvos na guerra para evitar que se reagrupem e contra-ataquem (apenas militares que se rendem são protegidos pela Convenções da Haia – 1899 e 1907). Ainda foi denunciado que os veículos de combate americanos abriram fogo contra um grupo de mais de 350 soldados iraquianos desarmados que tinham se rendido a um posto avançado após escaparem do ataque na Rodovia 8, em 27 de fevereiro; essas afirmações foram publicadas por Seymour Hersh. Quatro anos mais tarde, em 1995 o general Norman Schwarzkopf justificou o ocorrido na Rodovia da Morte:

A primeira razão do porquê foi bombardeada a rodovia que saía do norte do Kuwait é que havia muitos equipamentos militares em deslocação por ali, e eu tinha ordens de meus superiores para destruir o maior número de material bélico iraquiano que pudesse. A segunda razão é que aquelas pessoas não eram um bando de inocentes atravessando a fronteira para o Iraque. Eram estupradores, assassinos e criminosos que saquearam e pilharam o centro da Cidade do Kuwait e tentavam voltar para seu país antes de serem pegos.

No dia seguinte, poucas horas antes do cessar fogo, o fotógrafo Kenneth Jarecke voltava para o Kuwait, vindo do sul do Iraque. Na Rodovia da Morte, Jarecke observou um caminhão calcinado no meio da estrada, depois do ataque americano. Ele parou e registrou uma das imagens mais chocantes da guerra: um soldado iraquiano carbonizado dentro do veículo.

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Diante da cena dantesca, Kenneth Jarecke justificou a fotografia, dizendo para os soldados que o escoltavam: “Se eu não tirar fotos como essa, pessoas como a minha mãe continuarão pensando que, o que acontece nas guerras, é o que elas veem nos filmes“. Então, o fotógrafo se aproximou do caminhão calcinado e tirou a fotografia que você vê acima. É a brutalidade da guerra olhando para dentro das nossas almas. A fotografia, no primeiro momento, não foi publicada nos Estados Unidos. Os órgãos de imprensa daquele país a consideraram por demais explícita, alegando que a imagem poderia ferir as pessoas mais sensíveis.

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A sola de um sapato deixado para trás enquanto fugiam do Kuwait ao longo da Rodovia da Morte, tirada em 28 de fevereiro de 2003. Crédito da foto: Christiaan Briggs / Wikimedia

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Autoestrada 80, a rodovia da morte
Caminhão incendiado, cercado por cadáveres, na “Rodovia da Morte”. Crédito da foto: Kenneth Jarecke
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O restos de um soldado iraquiano carbonizado, que tentou sair por cima do painel de seu caminhão. Crédito da foto: Kenneth Jarecke

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Fontes: 1 2 3

“Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, os escritos permanecem)

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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