Animais & Natureza

Na toca da serpente

Numa das extremidades de uma toca escura, uma cobra píton, um bicho que, segundo lendas, teria nascido da barriga de um dragão no começo do mundo. Rainha das serpentes, ela atinge quase dez metros de comprimento, extensão um pouco menor que a de três automóveis Gol enfileirados ou igual à um edifício de três andares, e chega a pesar 150 quilos. Sua boca incrivelmente elástica e recheada de dentes afiados como sabres, quando aberta, é maior que uma raquete de tênis.

Uma píton é capaz de engolir objetos quase tão grandes quanto ela mesma. Pode devorar um homem inteiro, deglutindo até os ossos. Ou sufocá-lo num abraço mortal em poucos minutos. Do outro lado da toca, um caçador gbaya, membro de um grande grupo linguístico que ocupa o platô central da República dos Camarões. É um exímio caçador, valente. Enfrenta o inimigo em seu habitat, numa posição desconfortável e sem ajuda de nada além das mãos. Suas armas são a inteligência, a experiência, a malícia e muita coragem. O embate é demorado e ardiloso.

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Essa luta entre um bicho quase mitológico e o caçador acontece durante a seca, entre novembro e março, nas savanas e florestas do Platô Adamawa. É nessa época que as grandes cobras, que ficam mais tempo na água, vão para a terra para se reproduzir e incubar os ovos. As pítons costumam ocupar tocas cheias de túneis cavados por porcos da terra. Para encontrá-las, os gbayas se afastam de suas vilas, adentrando a savana em viagens de até 150 quilômetros que demoram vários dias. Antes de começar a caçada, que além das pítons incluiu veados, búfalos e elefantes, o líder da expedição reza e faz oferendas aos espíritos. Uma galinha é sacrificada e seu sangue, junto com as folhas de uma planta, é esfregado nas armas que serão usadas, como forma de proteção. Os gbayas acreditam que o sangue aplaca o perigo a que serão expostos. No caso das pítons, porém, os facões abençoados não têm utilidade alguma, já que os caçadores entram nas tocas de mãos abanando.

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O primeiro passo na busca das pítons é queimar o solo, para limpar as entradas das tocas. Quando as cinzas esfriam e a fumaça abaixa, os gbayas começam um exame minucioso: pequenos indícios como galhos quebrados ou pegadas, dão a esses homens experientes informações importantes, como o sexo, o tamanho e a data aproximada em que um animal passou por ali, além da direção que tomou. Em algumas tocas eles descem por mais de 50 metros até encontrar o local onde a píton está. Para a empreitada, os gbayas se espremem nos estreitos túneis levando tochas para iluminar o lugar, que se encharca de seu suor.

No caminho até a serpente, podem encontrar ainda outras surpresas: normalmente há morcegos, mas aparecem  também porcos espinhos, porcos da terra (afinal, são os donos do pedaço) e até hienas. Se a passagem é muito estreita para um ser humano, os gbayas não desistem: eles entram até onde podem e ali cavam um buraco rumo à superfície. Logo, com a ajuda de uma longa vara, seguem o caminho do túnel até onde o instrumento alcança. Nesse ponto, voltam a cavar um buraco e assim sucessivamente até encontrar o lugar onde a cobra está aninhada, num processo extenuante que pode demorar dias.

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Quando finalmente o encontro com a píton acontece é preciso estar atento. Se a serpente estiver incubando ovos ou copulando, ela atacará violentamente. Sibilando, jogará seu corpo para cima do caçador e tentará mordê-lo com seus dentes curvos e pontiagudos como agulhas. Embora não tenham veneno, eles contêm agentes patológicos que podem causar sérias infecções. Nesse caso, a tática dos gbayas é deixar a cobra morder um couro de antílope até que seus dentes se enganchem nele e ela possa ser arrastada para fora. Se a grande serpente estiver sozinha, tanto melhor: ninguém sabe por que elas se mantêm relativamente calmas, mesmo vendo que um caçador com fogo nas mãos se aproxima.

O gbaya colocará então a pele de antílope ou uma de suas mãos na altura dos olhos da serpente, em movimentos muito lentos para não assustá-la, enquanto, devagar, vai esticando a outra mão, com a qual agarrará o pescoço da píton. Assim, semi imobilizada, a cobra é arrastada para fora da toca. Surpreendentemente, ela até ajuda, fazendo movimentos ondulares. Mas toda essa calma só dura enquanto serpente e caçador estiverem no escuro.

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Assim que a píton vê a luz, ela se excita e, só então percebendo o ataque, tenta morder agitando seu corpanzil em todas as direções. Esse é um momento crítico para os caçadores, que precisam agir rápido, principalmente se a cobra é grande, já que em poucos segundos ela pode agarrar um deles e sufocá-lo. Se uma píton abraçar um homem, é difícil livrar-se dela. A única saída é cortar seu pescoço, algo complicado para quem está todo enroscado. Nessa hora a ajuda do companheiro é preciosa. É ele que puxa o caçador pelas pernas para fora da toca e o ajuda a segurar o rabo do bicho, deixando sua cabeça no escuro até o último momento para que fique calmo. Uma vez dominada, a cobra é morta, atingida na cabeça por uma espécie de garfo. Seu couro é então esticado com estacas no chão, os ovos cozidos e a carne defumada antes de ser transportada para as vilas. Os traficantes oferecem cerca de 60 dólares pela carne e pelo couro de uma píton grande.gbayas-piton_003

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No vídeo abaixo, os nativos utilizam outra técnica para capturar o animal, onde um deles utiliza sua perna como cobaia e quando a cobra come sua perna, eles a puxam para fora.

Fonte: Revista Terra nº 9, Edição 65

Artigo publicado inicialmente em 21/08/2015

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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