Eles já foram caçadores de cabeças temidos em toda a região. Atualmente são conhecidos por suas festas fúnebres, com cantos, danças e sacrifícios de animais, que podem durar de três a quinze dias, conforme a importância da cerimônia. E, quem diria, pela hospitalidade com que recebem seus convidados para esses rituais. São os toradjas, povo que vive na região de Tana Toraja, Ilha de Sulawesi (ou Celebes), uma das maiores da Indonésia, vizinha de Bornéu e a 500 quilômetros de Bali. Ninguém sabe ao certo de onde eles vieram, mas há pelo menos mil anos habitam as regiões montanhosas do centro da ilha.
Os toradjas gostam de contar que vieram de um vago norte e, por causa de uma tempestade, naufragaram e passaram a viver em Sulawesi. Mais tarde, perseguidos pelos muçulmanos, se refugiaram em terras altas e construíram os tongkonans, casas de formato estranho que lembram os barcos nos quais viajaram e que foram os primeiros abrigos em terra, onde eram invertidos e usados como teto sobre suas cabeças. Elas são feitas artesanalmente, com uma estrutura de bambu, tetos de palha inclinados e uma fachada inteiramente trabalhada, esculpida e pintada a mão. A casa do chefe da aldeia é fácil de ser reconhecida, tem dezenas de chifres de búfalos pregados na porta, um símbolo de prosperidade do clã.
A maioria dos vilarejos não ultrapassa 200 habitantes, e na praça central quase sempre há cravos ou café secando. Junto com o arros, eles constituem os principais produtos da economia dos toradjas e a base da grande Rambu soloq (Festa dos Mortos), ponto culminante da vida deste povo. Para essas ocasiões, uma aldeia provisória é especialmente construída. Durante os dias que a festa durar, todos vão dormir, comer e beber neste local. Há hoje cerca de 450 mil toradjas, mas calcula-se que igual número tenha emigrado. Só que, para a cerimônia dos mortos de uma pessoa da família, eles devem voltar de onde estiverem, sob pena de estigma social eterno e exclusão da comunidade. Assim, toradjas que emigraram acorrem de outras ilhas da Indonésia, Malásia, Cingapura, Tailândia, Japão ou mesmo da Europa, sempre carregando consigo suas economias para ajudar nas despesas da festa. Ela não pode começar enquanto toda a família não estiver reunida.
Os clãs vão chegando um a um, num cortejo solene de dezenas de pessoas, todas vestidas com a mesma cor. Elas trazem presentes, que são cuidadosamente anotados num caderno – e serão retribuídos numa festa equivalente. Quem dá um búfalo receberá outro em troca por ocasião de sua própria Festa dos Mortos. A mesma coisa para quem oferece um porco ou um saco de arroz. Essa é uma ocasião única de rever os parentes e amigos, de fortalecer os laços da comunidade e reafirmar a identidade toradja num mundo cada vez mais ocidentalizado. Isolada durante séculos, a região dos toradjas tornou-se acessível ao turismo no início dos anos 80. Hoje, o número de visitantes estrangeiros fica em torno de 50 mil por ano. E, num caso raro, a presença de turistas não desfigurou os rituais. Pelo contrário, o fato de vir gente do mundo inteiro para assistir a suas festas reforçou o orgulho e a identidade dos toradjas.
O ponto alto do ritual dos mortos é a matança de búfalos, que são degolados com uma faca na carótida. Segundo a tradição, o último búfalo sacrificado é quem leva o morto para o céu. E, quanto mais búfalos, melhor será a vida no paraíso. O problema é que um búfalo custa quase o preço de um automóvel e o mínimo decente para uma vida razoável no além são nove. Para ter uma ideia, já houve festas nas quais 400 búfalos foram sacrificados. Isso fez com que o governo controlasse o ritual, com impostos dissuasivos.
Toda a festividade está baseada na crença de que o céu é exatamente como a Terra: dividida em castas, com ricos e pobres, e uma hierarquia social rígida que é preciso preservar. Os animais sacrificados servem como provisões para o caminho a esse mundo é constituem a fortuna do morto no além. A presença de todo o clã e dos amigos mostra o prestígio social que ele tinha na Terra e ajuda na passagem. Os búfalos também são sacrificados em dias especiais, como: festivais de colheita, nascimento de crianças, festivais da fertilidade ou na conclusão de uma tongkonan (casa).
Toda essa matança – além dos búfalos, porcos, galinhas e, em alguns rituais, até cachorros são sacrificados – pode parecer cruel e selvagem, mas, embora não pareça, a harmonia com a natureza e o respeito são valores fundamentais dos toradjas. O sacrifício não é visto por eles como uma crueldade, já que os bichos vão para o céu, onde constituem a riqueza do morto. Além disso, o búfalo é o elo entre o céu e a Terra, o único veículo para subir ao paraíso. Assim, durante a vida, um búfalo toradja não trabalha, ao contrário do que acontece no resto da Ásia, sendo tratado, lavado e mimado 24 horas por dia. Os búfalos brancos, ou seja, os albinos, são os mais raros e mais caros. Seu preço pode chegar ao de um carro de luxo importado. Mas nada é perdido, a carne dos animais é distribuída aos convidados, segundo a posição social de cada um e a hierarquia familiar.
No passado, não eram só os búfalos que seguiam o morto para a tumba, também havia sacrifícios humanos. Os escravos, como os animais, eram mortos para que o defunto pudesse continuar a ser servido no além. Só com a chegada dos holandeses à Indonésia, em 1806, o costume foi proibido. Mas, em certos vilarejos perdidos na montanha, os sacrifícios rituais teriam continuado até os anos 40. Além dos búfalos e escravos, naquela época, era também necessário oferecer a cabeça de um inimigo – homem, mulher, velho ou criança, tanto fazia. Esse costume tornou os toradjas conhecidos como temíveis caçadores de cabeças.
Se com o tempo alguns itens de cerimônia se modificaram, outros continuam intactos. E embora convertidos ao cristianismo – 85% se declaram protestantes – os toradjas não abandonaram seus costumes ancestrais. Aos domingos, às igrejas da ilha estão cheias, com cânticos cristãos, mas até hoje, enquanto o ritual fúnebre não for celebrado, um defunto não é considerado “socialmente morto” pela comunidade. A festa é obrigatória justamente porque o morto não está “realmente morto” enquanto a cerimônia não for realizada. Conservado em formol, semi mumificado, ele fica à parte, numa miniatura das casas típicas da região construída especialmente para isso. Entre a data da morte e da cerimônia, os parentes levam comida ao morto e falam com ele, que oficialmente está apenas “doente”.
O ritual pode demorar muito, porque não só é preciso reunir o dinheiro necessário como esperar a chegada de todos os parentes. Só os muitos ricos conseguem realizar a cerimônia em dois ou três meses. Ela pode demorar anos. Nas conversas, os toradjas contam o caso – vergonhoso! – de um morto que está para ser enterrado há cinquenta anos. Quando finalmente a cerimônia acontece, os corpos são enterrados nas encostas de pedra da ilha e uma imagem de madeira chamada tau-tau é esculpida, vestida com as roupas do defundo e colocada num balcão, de onde os mortos continuam assistindo de camarote ao que fazem os vivos, e participando de suas vidas. Esse costume vem do fato que, para esse povo de agricultores, a terra era preciosa demais para ser utilizada como simples cemitério.
No princípio, só os nobres tinham o direito de virar tau-tau, mas, hoje, basta ter dinheiro para construir seu próprio balcão de estátuas. A disposição nas encostas também não tem nada de casual, cada balcão é destinado a uma família. Os tau-taus são sagrados, já que, segundo a crença, são o refúgio da alma do morto. É absolutamente proibido tocá-los, assim como os ossos, que às vezes estão espalhados em torno dos balcões. Mas, em alguns antiquários de Ujung Pandang, a capital da ilha, já é possível encontrar tau-taus antigos à venda, o que é um sacrilégio e um escândalo para os toradjas. Para eles, a festa na hora da morte e os rituais de sacrifício nada tem de macabros, a morte é uma continuação da vida. A prova é que as palavras “casa” e “túmulo” são ditas da mesma maneira. Casa com fumaça é a morada dos vivos, em que se cozinha. Casa sem fumaça é a casa dos mortos.
O único problema das festas fúnebres é o custo que elas implicam e seu caráter quase obrigatório. A pressão social é muito grande e, podendo ou não, os descendentes são obrigados a organizar a festa mais opulenta e luxuosa possível. A honra pessoal e a posição da família na sociedade estão em jogo. Se para algumas famílias as despesas não são problema, para a maioria podem se transformar num verdadeiro pesadelo. É preciso pagar os búfalos, os impostos sobre os búfalos, a comida, a bebida e o alojamento para centenas de convidados, a construção de uma aldeia provisória onde a festa será realizada e tecidos para a decoração, alguns dos quais antigos e sagrados, mas necessários ao ritual. A maioria acaba se endividando junto a agiotas, penhorando as terras ou colheitas futuras. Muitas vezes os filhos saem prejudicados porque acabam não podendo seguir os estudos que pretendiam, já que as economias são usadas para enterrar algum familiar. No passado era ainda pior: muitos toradjas acabavam se vendendo como escravos para pagar as dívidas.
Se no princípio esse sistema de festas constituía um elo social, hoje ele ameaça à sobrevivência da etnia. No começo era uma maneira hierarquizada de realizar trocas, que mantinha a ordem social. Hoje faz com que muitas famílias percam as propriedades, empobreçam e sintam insegurança ao enterrar seus mortos. É que a herança, distribuída entre a família conforme os presentes que foram dados, também inclui as dívidas e às vezes esse legado acaba sendo um péssimo negócio. Antes de casar, por exemplo, um toradja, mais do que a paixão que a moça possa despertar, deve pensar e investigar bem a família da noiva. Se ela tiver algum morto por enterrar, pode acabar solteira, porque o marido tem que assumir o compromisso da festa. Para uma toradja, não adianta ser bonita e inteligente: é preciso não ter nenhum cadáver no armário!
Texto adaptado de um artigo publicado na Revista Terra, nº 8
“Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, os escritos permanecem)
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