Cidades foram pensadas e projetadas, basicamente, para reunir pessoas e alavancar suas vidas. Varanasi, norte da Índia, pode, em princípio, contar com todos os elementos de qualquer outra cidade do mundo. Mas a vida organizada, objetivo elementar do convívio urbano, é ali uma ideia secundária. Varanasi é a cidade da morte. Um lugar onde a vida se alimenta da expectativa da morte. No raiar do dia, fiéis hindus entram na água salgada do Rio Ganges para um banho que, acreditam, fundamenta um longo caminho de libertação de suas almas, uma viagem ao nirvana. O resultado é um estranho ritual de obstinação e desespero, medo e esperança, fé e felicidade. Como só a Índia poderia proporcionar.
O movimento começa antes do sol nascer. Primeiro vêm os sons – orações dispersas e longínquas, cantos, corpos e barcos entrando na água. O sol, como que para distinguir aqueles pedaço da Índia de todo o resto do país, surge em tons rosados quando alvorece em meio às névoas que cobrem o rio nesse momento mágico do dia. O clima é de mistério. E então vem a luz que revela o rito ancestral: seminus, os indianos começam seu transe. Submergem, bebem a água, retornam, respiram, rezam, se oferecem ao rio. Com potes de bronze, atiram a água do Ganges para todos os lados. Enfim, entorpecidos, saem do rio ensopados de liberdade. Sentam-se nas escadas de pedra, conversam, massageiam-se uns aos outros, besuntam seus corpos de óleo. Sentem-se livres. Prontos para tudo – principalmente para morrer.
O ritual se repete dia após dia. Tem sido assim há pelo menos 2.500 anos, desde que Varanasi, então apenas uma aldeia às margens do Ganges, começou a receber os primeiros peregrinos. Manda a tradição do hinduísmo que, ao menos uma vez na vida, os fiéis sigam até o rio no ponto onde ele banha a cidade. Os hindus acreditam que sua vida está condicionada a um inevitável ciclo de reencarnações, o chamado samsara. Seu maior objetivo é superar esse ciclo, em busca da glória de se atingir o nirvana, o supremo estado de sabedoria oriundo do conhecimento completo de si mesmo e do universo. Em outras palavras, um estágio só conseguido pelos hindus com a libertação da alma, com a morte abençoada em Varanasi, depois de um banho na água sagrada no Ganges. Após serem cremados ali, os hindus devem ter suas cinzas jogadas no grande rio.
O hinduísmo é a religião majoritária dentro de uma nação que também concentra quase todas as variantes de fé conhecidas no mundo. Segundo país mais populoso do planeta, a maioria dos 1.252 bilhões de habitantes da Índia são hindus, mas ali também convivem 110 milhões de muçulmanos, 22 milhões de cristãos e 8 milhões de budistas, além de adeptos de outras crenças, como os sikhs e os jainistas. Os três deuses soberanos que regem os princípios do hinduísmo, Brahma, Shiva e Visnhu, servem também como referência para dividir a sociedade indiana num sistema de castas, onde a posição de cada indivíduo determina seus direitos e deveres espirituais e sociais.
Extremamente rígido, o sistema de castas por vezes beira a intolerância. As distinções entre os indivíduos são imensas. Por exemplo: são conhecidos como ghats as escadarias de pedras dispostas às margens do Ganges em Varanasi, lugares onde os hindus descansam e se preparam para os banhos. São 84 ghats em Varanasi e elas se espalham por uma extensão de 7,25 quilômetros ao longo da cidade, divididos por dezenas de nomes, cada qual com sua história e importância. O mais visitado é Dasaswamedh, acesso principal do centro para o rio. Mas nenhum ghat é tão impressionante quanto Manikarnika, onde os mortos são cremados para que suas cinzas sejam jogadas no rio.
Taís cerimônias respeitam a hierarquia das castas. Por isso, os integrantes da casta superior, os brâmanes, queimam seus mortos num ritual regado a incensos e flores. O corpo, disposto sobre uma maca e coberto com sedas coloridas, é também banhado no rio antes de arder em grandes fogueiras. Já os que pertencem às castas mais pobres, como os sudras, sem dinheiro para pagar a cremação, têm seus cadáveres lançados direto no Ganges. E aqueles que não se incluem em nenhuma das castas – todas originárias de Brahma, o deus responsável pelo princípio criador da vida – os chamados párias, sequer têm o direito de banhar-se no rio. Ou seja, eles jamais podem atingir o nirvana.
Dezenas de templos alinham-se na zona dos ghats, quase todos dedicados a Shiva, deus fecundador e destruidor, muito cultuado em Varanasi. Um deles, Vishwanath, foi concebido para romper com a diferença entre as castas. O marajá Pandit Malaviya, que o construiu em 1776, queria que a religião abdicasse do sistema – não deu certo, mas, pelo menos, o templo ainda hoje admite integrantes de todas as castas.
Como todos os grandes rios do mundo, o Ganges desvenda paisagens distintas no longo rastro de fertilidade deixado por sua água no norte da Índia. Alimentando o país e sua gente ao longo de 2.575 quilômetros, ele brota das neves do Himalaia, ara planícies desérticas – como na região de Varanasi – rasga florestas e descansa no mar nos estuários repletos de vida selvagem no Golfo de Bengala, já em Bangladesh. Suas virtudes naturais, contudo, têm importância menor dentro da cultura indiana. Vale mais sua vocação divina, que deriva da crença de que ele brota dos cabelos de Shiva – os indianos acreditam que Shiva vive no Himalaia, o que dá um fundamento geográfico à tal crença.
O rio seria, portanto, um meio de ligação entre o divino e o humano. O Ganges, porém, é hoje ele próprio um rio ameaçado de morte. A poluição doméstica e industrial das cidades que corta carregou sua água de detritos. Em Varanasi é fácil entender a questão: os hindus, entre outras coisas, lavam suas roupas no mesmo rio onde purificam sua alma, e o esgoto da cidade é lançado ao rio sem nenhum tratamento. Desde os anos 80, o governo indiano tem tentado, sem muito sucesso, limpar o rio com uma variedade de projetos antipoluentes. Algumas práticas mais simples até “modernizar” ritos ancestrais: para os funerais de Varanasi, já existem crematórios elétricos, menos poluentes, mas obviamente menos tradicionais que as piras de madeira.
Coração do hinduísmo, a cidade é também um dos principais destinos de outra religião oriental: o budismo. No vizinho povoado de Sarnath, o príncipe Sidartha Gautama, o Buda, recebeu a iluminação divina sob a sombra de uma figueira, no começo do século 6 a.C. Desde então, a árvore é replantada sempre que morre – a atual é de 1931. No lugar onde Buda fez o primeiro sermão a seus seguidores foi erguida uma supra, a Dhamekh, um edifício redondo que os budistas circundam durante suas orações.
Sarnath, um centro religioso que atrai budistas do mundo todo, é um gueto de paz e silêncio que contrasta com o barulho das ruas de Varanasi. Numa das áreas menos desenvolvidas do país, uma zona agrícola e super populosa no coração do Estado de Uttar Pradesh, Varanasi é um sinônimo de caos. A cidade não para jamais, num movimento frenético e constante que parece quintuplicar seu 1,3 milhão de habitantes. Mais que isso, o caos iguala, em estreitas ruas de terra, seres humanos em petição de miséria, esmolando, máquinas igualmente precárias (táxis caindo aos pedaços e riquixás) e animais, às vezes donos de uma condição privilegiada na confusão – as vacas, sagradas dentro do hinduísmo, se arrastam sem ser incomodadas, quando não estão deitadas parando a tudo e a todos como se delas dependesse o ritmo da vida na mais fascinante cidade da Índia.
Os banhos no rio sagrado servem como uma espécie de reconhecimento hindu da proximidade da morte, o que faz de Varanasi um lugar sinistro, destino de pessoas irremediavelmente condenadas. As ruas imundas servem como casa para todos. Uma legião de idosos ou doentes terminais abandonam-se nas vielas escuras da parte velha da cidade, ao longo dos ghats mais movimentados. Circulam entre eles os emblemáticos sadhus, homens que se proclamam soberanos por abdicar de tudo para viver pregando sua religião. Esse caos, inerente ao dia-a-dia da Índia, expressa até mesmo a noção de tempo compreendida pela gente errante de Varanasi. A vida cotidiana ali não goza de nenhuma importância. Espera-se o fim do samsara, o ciclo de reencarnações que só se encerra no fundo das águas que banham a cidade. O Rio Ganges – e aqui tal expressão encontra sua mais perfeita tradução – lava a alma dos indianos.
Processo de cremação de um cadáver
Morte está por todos os lugares de Varanasi. Se respira a poeira dos corpos sendo queimados nos ghats; se ouve o canto do povo pelas ruas em direção ao rio carregando entes queridos envolto em panos e flores coloridas. O processo de queima de corpos continua incessantemente 24 horas como uma espécie de fábrica mórbida; as viúvas idosas esperar pacientemente em um albergue próximo para a sua vez de morrer. A vida continua insensível à morte. Para o hindu, ela não é grande coisa, porque a pessoa vai voltar em breve esperançosamente em uma vida melhor. Ou melhor ainda, pode conseguir o ”moksha”, ou libertação.
Fonte: Revista Terra nº 09
Crédito das fotos: Michael Huniewicz
Texto originalmente publicado em 6 de novembro de 2015
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Meu Deus, quanta pobreza, porém cada um com sua cultura e temos que respeitar.
Temos que aceitar com todo o respeito, a cultura de um povo.
Sensacional o seu relato. Obrigada por fazê-lo!
Obrigado Gabriela pelo seu apoio
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