Histórias

A tragédia dos mortos do Everest

Com o lançamento do filme “Everest”, baseado em fatos reais ocorridos em 1996 e relatados no livro best-seller de Jon Krakauer, “No Ar Rarefeito”, abre a polêmica das centenas de mortes ocorridas no Monte Everest e os corpos que ficaram espalhados pela montanha.

A primeira escalada bem sucedida ao topo foi feita por Edmund Hillary e Tenzing Norgay, em 1953, porém antes disso já havia ocorrido mortes, como numa expedição de George Mallory em 1922, que matou sete sherpas numa avalanche e do próprio George e seu companheiro de escalada, Andrew Irvine em 1924. Os nepaleses que vivem ao sul do Monte Everest, o chamam de Sagarmatha, que pode ser traduzido como “Teto do céu”. Já os tibetanos que vivem ao norte da montanha a chamam de Chomolungma ou “deusa mãe do mundo”, mas localmente, não por nada que o povo sherpa, chamam a montanha de “A montanha da morte“.

Talvez de todas as mortes, a mais conhecida, são os restos mortais abandonado na montanha de Tsewang Paljor, um jovem escalador indiano que perdeu a vida, junto com outros dois colegas, tentando ajudar outros escaladores, também na trágica tempestade relatada por Jon Krakauer, no trecho conhecido como “Esforço Final” (Final Push) do lado Nordeste, entre o Acampamento VI, a 823 metros, e o cume. Corpo esse que ficou conhecido como “Botas Verdes“, por estar o escalador morto, usado botas verdes fluorescentes. Para saber da história de Tsewang Paljor, leia aqui.

Monte Everest

Por décadas, uma corda leva alpinistas ao cume e passa pelo que ficou conhecido como Caverna das Botas Verdes. Uma pequena beirada de pedras calcárias à 8.500 metros, que já era famosa entre os alpinistas pela mesma razão de ter ganhado este nome. O corpo de Paljor, tem sido um macabro ponto de referência para todo alpinista na rota Nordeste, caído e encolhido em posição fetal, calçando suas botas de montanhismo de cor verde. Para quem pretendesse chegar ao topo pela rota Nordeste, praticamente tinha que cruzar as pernas do indiano, deitado de lado, como se estivesse dormindo, no meio do caminho.

Para cada dez montanhistas que chegaram ao cume, a montanha resolveu tomar um deles para si. Desde a histórica chegada do primeiro homem ao topo, mais de 220 pessoas já morreram, e a triste realidade das horríveis condições do Esforço Final fez com que 150 corpos jamais tenham sido recuperados – e provavelmente jamais serão. Eles ainda está lá, quase todos na Zona da Morte. As mortes podem ser causadas pela falta de oxigênio, pelo frio, insuficiência cardíaca, queimaduras, avalanches, deslizamentos, fendas traiçoeiras e ferimentos.

Acima de uma certa altitude, não é humanamente possível adaptar-se. Conhecida como Zona da Morte, ela só existe em 14 montanhas do mundo, as que passam da marca de 8.000 metros. Nem todo o treinamento e condicionamento físico do mundo faz com que uma pessoa resista mais do que 48 horas lá. O nível do oxigênio na Zona da Morte é apenas um terço encontrado ao nível do mar, o que em termos simples significa que o corpo usa as suas reservas de oxigênio mais rápido do que a respiração consegue recarregá-las.

Mas a falta de oxigênio e o terreno traiçoeiro não são os únicos desafios do Everest. As subidas raramente são sequer cogitadas fora de um período curto entre maio e junho, quando as condições estão no seu absoluto melhor ponto, com temperatura média de 27 graus Celsius e ventos de 80 km por hora. Mas o Monte Everest é tão alto que o topo chega a penetrar na estratosfera, onde os ventos conhecidos por “Jet Streams“, podem soprar até 320 km por hora, derrubando a temperatura a 73 graus negativos.

Qualquer pedaço de pele exposta em grandes altitudes, mesmo na melhor das condições, está sujeita a necrose. Uma reação ao frio extremo, a necrose começa quando os vasos sanguíneos na pele se contraem para preservar a temperatura do corpo, em condições em que um fluxo sanguíneo normal levaria a um resfriamento corpóreo perigosamente rápido. Com o tempo, se as áreas expostas da pele não forem reaquecidas, a falta de fluxo sanguíneo causa morte dos tecidos e, mesmo se reaquecido neste ponto, ocorre a gangrena. Neste estágio, amputações são comuns. Os alpinistas conhecem muito bem estes fatos. Eles são reiterados em cada fonte de informações e em cada artigo publicado, mas de alguma forma contribuem para a perigosa atração que a montanha exerce.

Outro caso fatídico, é o de Hannelore Schmatz, que no dia 2 de outubro de 1979, depois de uma chegada bem sucedida ao topo, e por razões desconhecidas, morreu de exaustão a 100 metros de distância do Acampamento IV. Por anos, todo alpinista que passasse pela rota Sul podia ver o corpo dela, sentado, recostado na mochila, com os olhos abertos e o cabelo castanho ao vento. Apesar de estar tão exposto e visível em uma rota de alpinismo tão percorrida, operações de resgate são virtualmente suicidas na Zona da Morte. Em 1984, um inspetor de polícia e um sherpa tentaram recuperar o corpo de Hannelore, mas não voltaram vivos. Por fim, foram os fortes ventos que jogaram o cadáver encosta abaixo.

Uma área ao longo da rota nordeste recebeu o inocente apelido de “Vale do Arco Íris”, simplesmente em alusão às diversas jaquetas multicoloridas usadas pelos corpos que se amontoam na encosta. Mesmo em condições e altitudes letais, os corpos podem permanecer por décadas, alguns aparentemente congelados no tempo, com seus equipamentos de alpinismo intactos. O cineasta David Brashears que já chegou ao topo do Everest cinco vezes, explicou: “Apesar da neve e do gelo, o Everest é tão seco quanto um deserto. O sol e o vento rapidamente mumificam corpos humanos“.

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Jamais foi feito nenhum estudo sobre as causas de morte no Everest, sobre o que faz com que pessoas sentem-se e desistam, algumas vezes à distância de um grito de um local seguro. Mas os alpinistas falam sobre um tipo de confronto com o medo que experimentam em um certo ponto na subida. A compreensão do fato de que você não apenas não será capaz de parar para ajudar ninguém em perigo, como também não poderá esperar que ninguém possa te ajudar no caso de você errar qualquer coisa, a qualquer momento.

No dia 16 de maio de 2006, o alpinista britânico David Sharp chegou sozinho ao cume do Everest e ao descer, sentiu-se cansado e sentou-se a meio metro do corpo do “Botas Verdes”, e quem olhasse, à primeira vista acharia que ele estivesse morto também. Suas mãos, protegidas por luvas, estavam aos seus joelhos. Seu capuz e chapéu projetavam seu rosto nas sombras.

A única parte do corpo visível era o seu nariz, já severamente ulcerado pela necrose, em um tom verde bem escuro, mas ele estava vivo, e o pouco vapor subindo da boca do homem, era sinal disso, mas ele foi deixado para morrer e morreu provavelmente porque havia congelado a válvula de seu tanque de oxigênio. David não era novato em montanhas. Em 2002 tinha chegado ao cume do monte vizinho do Everest, o Cho Oyu, e em 2003 e 2004, tentou chegar ao cume do Everest, tendo perdido alguns dedos por congelamento na tentativa de 2003.

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Esse episódio entrou para a história da montanha mais alta da Terra. Quarenta e dois alpinistas subindo ao cume, e posteriormente descendo, passaram pelo homem, sem parar para oferecer ajuda, seja por opção, por ignorância ou por confundi-lo com uma pessoa já sem vida, algo esperado naquela infame caverna. Alguns membros do grupo eram do canal de TV Discovery, que tentaram até entrevistar o homem moribundo, fotografaram-no, e então largaram ele para trás, deixado para morrer sozinho na neve. Mais tarde, cada desses homens foram entrevistados, e cada um contou uma versão diferente da história e apesar de arrepiante por si só, o incidente nem chama atenção em meio ao grande contexto mortífero do Monte Everest.

No mesmo dia em que David Sharp morreu, os meios de comunicação de todo o mundo louvaram Mark Inglis, um guia da Nova Zelândia, que subiu o Everest mesmo sem uma perna. Após um acidente de trabalho, ele perdeu a perna. Usando uma prótese de fibra de carbono ele atingiu o cume. A história, vendida como uma prova da superação humana, ocultou o detalhe de deixarem David Sharp morrendo para fazer o programa de TV.

A história sinistra só veio a publico porque o site mounteverest.net pegou notícia e começou a puxar o fio. Foi um brasileiro, chamado Vitor Negrete que descobriu que David Sharp estava morto. Vitor foi um montanhista brasileiro de grande renome, sendo um dos maiores nomes do esporte no país. Dois dias depois, era Vitor que morreria no Everest, vitima do congelamento e de edema pulmonar. Ele também está lá na montanha.

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A mídia chama isso de “febre do cume” (summit fever). Aparentemente insensibilidade que faz com que os montanhistas abandonem a ética e a humanidade durante a subida do Everest, às vezes literalmente escalando por cima de cadáveres para chegarem aos seus objetivos. Qualquer que seja a quantidade de preparação e o preço estranho a se pagar, talvez não seja simplesmente uma determinação de ferro o que faz com que alguém abandone seus colegas de escalada, mesmo ainda tendo energias para chegar ao topo.

Em condições tão alienígenas, absolutamente hostis à vida humana, os alpinistas devem ser confrontados com a sua própria mortalidade. Sob a sombra do medo puro e primordial, eles devem perceber que estão além de qualquer possibilidade de auxílio, assim como além de qualquer possibilidade de auxiliar qualquer outro. Se não, eles caem entre aqueles que nunca se vão, abandonados no Everest. David Brashears, um dia disse: “Não havia nada em meu treinamento para me preparar, em passar pelo cemitério a céu aberto me esperando lá em cima“.

Normalmente quando um alpinista morre na montanha, deseja permanecer por lá, uma tradição já usada por antigos marinheiros, há séculos atrás, que preferiam ao morrer, serem jogados no mar. Já a família de alpinista morto, deseja enterrá-lo decentemente, mas mesmo abaixo da Zona da Morte, o resgate de um corpo custa milhares de dólares e requer o esforço de seis a oito sherpas, que potencialmente colocam suas vidas em risco. “Mesmo para resgatar um papel de bala no alto da montanha é um grande esforço, porque está totalmente congelado e tem que se cavar ao redor“, disse Tshering Sherpa, presidente e fundador da Asian Trekking, empresa com sede em Katmandu e presidente da Associação de Montanhismo do Nepal. “Um cadáver que normalmente pesa 80 kg pode pesar 150 kg quando congelado e cavar o gelo circundante ao corpo exige um grande esforço“, completou.

Por desejo da família, David Sharp foi removido da caverna da bota verde e da vista dos outros alpinistas. Os próprios sherpas estão sendo orientados, quando podem, a encobrir os corpos com pedras ou jogá-los em fendas, dando um pouco de dignidade a pessoa morta, ou mesmo para que as pessoas não tirem fotos, e seus familiares acabarem vendo-as pela internet. Mesmo com todos os riscos, a cada ano milhares de alpinistas de diversos países tentam a subida. O monte Everest recebe anualmente 60 mil turistas que visitam sua base e 1.300 alpinistas que arriscam a escalada.

Alguns corpos identificados

George Mallory (1924)

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Alguns corpos conseguem ser identificados, enquanto outros permanecem congelados no anonimato na mesma postura em que morreram. George Mallory e seu companheiro, Andrew Irvine morreram em 1924. George Mallory, morreu devido a traumatismo craniano e seu corpo descoberto por uma expedição americana em 1999. Ele é considerado a primeira pessoa a ter escalado o Everest. No entanto, não há qualquer prova de que ele chegou ao cume.

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Francys Distefano-Arsentiev (1998)

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Francys Distefano-Arsentiev foi a primeira mulher a chegar ao topo do Monte Everest sem o auxílio de cilindro de oxigênio. Ela morreu de congelamento e edema cerebral em 1998 ao escalar o Monte Everest com o marido. Ela se separou de seu marido, enquanto desciam. Eles tentaram encontrar um ao outro, mas não conseguiram, e ambos morreram na montanha. Dois alpinistas a caminho do topo, viram Francys, mas não pararam para ajudá-la. Envergonhados e talvez com a consciência pesada, eles voltaram nove anos depois, em 2007 e cobriram seu corpo com a bandeira americana, para dignificar a sua morte e também mudaram seu corpo, tirando-o da vista de outros escaladores. Na montanha, o corpo de Francis era conhecido como “A Bela Adormecida”.

Hannelore Schmatz (1979)

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Hannelore Schmatz, uma alpinista alemã, que morreu em 1979 devido à exaustão e congelamento, a 100 metros de distância do Acampamento IV. Acredita-se que ela se inclinou contra a mochila para descansar por um tempo, e morreu nesta postura incomum.

Tsewang Paljor (1996)

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Tsewang Paljor morreu durante a tragédia relatada por Jon Krakauer em 1996. Ele ficou preso por uma nevasca enquanto descia e morreu devido à exposição ao frio. Seu corpo é conhecido no Everest como “O Bota Verde”, entre aqueles que morreram. Seu corpo é usado como um marco por outros alpinistas.

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Marko Lihteneker (2005)

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Marko Lihteneker, um alpinista esloveno, que morreu em 2005, enquanto descia a montanha. É alegado que ele estava tendo problema com sua máscara de oxigênio, quando foi visto pela última vez. Seu corpo encontra-se 8.800 metros do acampamento base.

David Sharp (2006)

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David Sharp, alpinista britânico, morreu em 2006, enquanto descia a montanha e parou para descansar perto do “botas verdes”. ” Ele congelou e não conseguiu mais se mover, e acabou morrendo.

Shriya Shah-Klorfine (2012)

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Shriya Shah-Klorfine morreu em 2012 enquanto descia. Ela passou 25 minutos comemorando no cume, ficando sem oxigênio. A exaustão a matou. Seu corpo foi envolvido na bandeira canadense e está localizado a 300 metros abaixo do cume.

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Texto adaptado do publicado originalmente no blog A Sea of Lead, A Sky of Slate

“Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, os escritos permanecem)

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