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Corlea Trackway: Quando o homem caminhava sobre os pântanos

A Corlea Trackway é uma antiga estrada de madeira preservada em um pântano na Irlanda, datando da Idade do Ferro, revelando habilidades técnicas e sociais.
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Há tempos imemoriais, vastas extensões do noroeste da Europa, especialmente a Irlanda e a Grã-Bretanha, eram dominadas por uma paisagem enigmática de pântanos. Estima-se que cerca de um quinto da terra da Irlanda estava submerso nesses vastos ecossistemas pantanosos. Esses lugares encharcados, repletos de restos semi-decompostos de plantas falecidas conhecidos como turfa, foram forjados no crepúsculo da última era glacial, há aproximadamente 10.000 anos atrás.

Nessa época remota, vastos lagos rasos pontilhavam a região, remanescentes do derretimento das geleiras. A ausência de sistemas de drenagem adequados combinada com o constante acúmulo de matéria orgânica morta deu origem a camadas sucessivas de turfa, transformando essas terras úmidas em verdadeiras cápsulas do tempo arqueológicas. Um testemunho impressionante dessa preservação única é o achado de cientistas irlandeses: carne e manteiga, cuidadosamente embalados e sepultados em uma turfa, permaneciam notavelmente frescos após três milênios, mantendo-se intactos ao ponto de ainda serem comestíveis.

Corlea Trackway, quando o homem caminhava sobre os pântanos
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Para atravessar os desafios impostos por essas terras pantanosas, as civilizações antigas engenhosamente construíram uma intrincada rede de estradas de madeira, conhecidas como trackways, que cruzavam essas regiões. Essas vias de madeira, uma característica distintiva do cenário europeu, foram progressivamente erguidas desde os tempos neolíticos até a era medieval. Inicialmente concebidas para o tráfego de pedestres, essas estradas se tornaram indispensáveis com a introdução de veículos de rodas na região do norte do continente. Com o passar dos séculos, muitas dessas estruturas afundaram e se deterioraram nos pântanos, mas foram preservadas graças à singular composição química do solo e à ausência de oxigênio, o que as tornou testemunhas vívidas do passado até os dias atuais.

Entre os exemplos mais impressionantes dessas antigas vias de madeira está a Corlea Trackway, situada em um antigo pântano próximo à aldeia de Keenagh, ao sul da cidade de Longford, na Irlanda. Estendendo-se por cerca de um quilômetro de comprimento e alcançando uma largura de três metros e meio, esta estrada ancestral está localizada em uma área anteriormente coberta por densas florestas, pântanos perigosos e lagoas traiçoeiras durante a Idade do Ferro. Hoje, o local é uma vasta extensão de vegetação rasteira, mas sua história remonta a um tempo em que a paisagem era vastamente diferente, oferecendo um vislumbre fascinante das dificuldades enfrentadas por aqueles que ousavam explorar essas terras inóspitas.

Corlea Trackway, quando o homem caminhava sobre os pântanos
Parte da Corlea Trackway preservada num prédio especialmente construído para isso | Crédito da foto

Em 1984, durante uma operação de extração em larga escala de turfa, uma descoberta fascinante emergiu das profundezas da terra: um antigo caminho de madeira, enterrado a cerca de dois metros sob a superfície da turfeira. A análise minuciosa dos anéis de crescimento presentes nas tábuas de carvalho que compunham essa via revelou que as árvores usadas para sua construção foram derrubadas no longínquo ano de 148 a.C. Esses caminhos de madeira, conhecidos também como “toghers” na Irlanda, eram geralmente erguidos sobre uma base de turfa, capim, galhos e gravetos dispostos cuidadosamente sobre a superfície do pântano.

O Corlea Trackway destaca-se como o mais extenso e impressionante exemplar desse tipo de estrutura. Construído com tábuas de carvalho medindo entre 3 e 3,5 metros de comprimento e aproximadamente 15 centímetros de espessura, este caminho repousava sobre duas vigas de sustentação.

A magnitude dessa construção é evidente ao considerarmos que sua edificação demandou a derrubada de pelo menos 300 majestosas árvores de carvalho, cuja quantidade de madeira seria suficiente para preencher mil vagões de trem. Adicionalmente, uma quantidade similar de madeira de bétula ou vidoeiro foi utilizada para as vigas de suporte, testemunhando o esforço monumental empregado na criação dessa via vital que atravessava territórios antes intransponíveis.

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A estrada Corlea Trackway culmina em um pequeno monte elevado, onde se conecta a uma segunda via de madeira, estendendo-se por aproximadamente 1 quilômetro em direção à terra firme do outro lado do pântano. A madeira empregada na construção dessa segunda estrada também provém de carvalhos derrubados no mesmo período datado para a Corlea Trackway, sugerindo fortemente que todo esse sistema viário sobre o pântano foi concluído em um único ano.

A magnitude dessa empreitada é evidente, pois a construção de tais estradas teria exigido uma quantidade significativa de trabalho humano. No entanto, é curioso notar que a Corlea Trackway parece não servir a nenhum propósito aparente que justifique tanto esforço e investimento.

É importante ressaltar que nem todas as vias de madeira foram concebidas para atravessar pântanos. Algumas foram projetadas para adentrar as turfeiras, e é plausível que a Corlea Trackway tenha sido uma delas. Ao longo dos séculos, arqueólogos e trabalhadores da extração de turfa desenterraram centenas de corpos depositados nessas áreas ao redor da Europa. Muitos desses corpos exibiam sinais de mortes violentas, indicando que foram vítimas de rituais de sacrifício ou execuções de prisioneiros. Essa prática sombria lança uma sombra intrigante sobre o propósito e o significado das antigas vias de madeira, sugerindo conexões profundas com rituais e crenças religiosas antigas.

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Centro de exposição contendo uma parte preservada da estrada de madeira Corlea Trackway | Crédito da foto

Cerca de 18 metros do trecho original da Corlea Trackway, a antiga estrada de madeira, foram preservados meticulosamente em um centro de exposições especialmente projetado para esse fim. Equipado com umidificadores de ar, o ambiente é cuidadosamente controlado para evitar a decomposição ou o ressecamento da madeira antiga devido ao calor. Em meio a uma área circundante de 4 hectares de turfeiras deixadas intocadas, uma vigilância constante é mantida para garantir que o terreno permaneça úmido, preservando assim o restante da estrada original enterrada.

Para proporcionar acesso aos visitantes até o centro de exposições, aproximadamente 100 metros de uma moderna estrada de madeira foram construídos sobre a antiga via enterrada. Essa rota contemporânea não apenas permite uma travessia segura até o local de preservação, mas também serve como uma ligação simbólica entre o passado e o presente, destacando a importância histórica e cultural da Corlea Trackway e seu significado para os visitantes contemporâneos.

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Estrada de madeira descoberta em Annaholty Bog, ma Irlanda, com 70 metros de comprimento e 7 metros de largura, ligando duas ilhas de terras secas dentro de um pântano, com as derrubadas das árvores datadas ao redor de 40 a.C | Crédito da foto
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Réplica de um rastro chamado “Sweet Track”, em Shapwick Heath, na Inglaterra. O original foi construído em 3807 a.C e atravessava um pântano | Crédito da foto
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Réplica de um caminho neolítico chamado “Caminho do Abade”, sendo o original construído em 2.000 a.C. A réplica não existe mais, sendo destruída por uma inundação | Crédito da foto
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Trufas sendo extraídas manualmente
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Representação de como poderia ter sido construída as estradas de madeira | Crédito da foto
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Artigo publicado originalmente em maio de 2016

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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