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Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho

No passado, antes da chegada dos europeus, grandes “congestionamentos” formados pelo acúmulo de troncos e árvores caídas em rios e riachos eram um fenômeno comum na América do Norte, mas nenhum era tão grande quanto o que existia no rio Vermelho. No seu auge, esse congestionamento de troncos – conhecido como “Great Raft” ou Grande Jangada – se estendia por 265 quilômetros, entupindo a parte mais baixa do rio, no que hoje é o noroeste da Louisiana e o nordeste do Texas, nos Estados Unidos.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

O vale aluvial do rio Vermelho é conhecido por abrigar os solos mais erodíveis entre todos os grandes vales de rios nos Estados Unidos. Antes da Era Industrial e da expansão para o oeste, o rio Vermelho periodicamente sofria inundações que causavam escavações nas florestas ao longo de suas margens. Quando as árvores eram arrancadas do solo, elas eram arrastadas para o rio, formando uma série de congestionamentos intermitentes que se estendiam por muitos quilômetros, indo desde a atual fronteira Arkansas-Louisiana até a área de Natchitoches, na Louisiana.

Com cada inundação subsequente, um novo suprimento de troncos era adicionado, e o congestionamento crescia até atingir extensões de mais de cem quilômetros. Partes da jangada ocasionalmente se desintegravam e flutuavam rio abaixo, mas a adição constante de novas toras e destroços à extremidade superior mantinha a jangada com um comprimento quase constante de 200 a 240 quilômetros. Esse congestionamento também causava o desvio da água sobre as margens e para o vale, formando numerosos lagos grandes e profundos.

Alguns desses lagos ainda existem até hoje, sendo conhecidos como Great Raft Lakes. Entre eles, estão os lagos Caddo, Cross, Wallace, Bistineau e Black Bayou. Eles são testemunhos silenciosos da época em que a Grande Jangada dominava a região e criava paisagens únicas e características ao longo do rio Vermelho.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

Os índios Caddo, que habitavam ao longo do rio Vermelho, foram grandemente beneficiados por esse fenômeno natural. As inundações periódicas do rio, que resultavam na formação da Grande Jangada, traziam consigo um efeito positivo para os Caddos e suas comunidades. A cada primavera, quando o rio arrancava árvores e adicionava aos congestionamentos, deixava para trás campos férteis e abertos. Essas áreas propícias para o cultivo permitiam que os Caddos praticassem a agricultura e colhessem abundantes safras de milho, feijão, abóbora e outros alimentos.

A disponibilidade de terras férteis proporcionada pelas inundações e a proteção oferecida pela Grande Jangada foram cruciais para o desenvolvimento e prosperidade da cultura Caddo. Eles podiam viver em harmonia com a natureza, aproveitando os recursos que o rio Vermelho oferecia para garantir sua subsistência e bem-estar.

Além disso, a presença da Grande Jangada também teve um efeito adicional benéfico para os Caddos. Ela serviu como uma barreira natural que impediu o contato direto com os europeus por cerca de 150 anos. Enquanto os colonizadores espanhóis exploravam a região, os Caddos conseguiram permanecer relativamente isolados e, assim, proteger sua cultura, tradições e modo de vida das influências externas.

Foi somente em 1691 que uma expedição espanhola, liderada por Domingo Terán de los Rios, primeiro governador espanhol do Texas, finalmente entrou em contato com os índios Caddo. Esse encontro histórico marcou o início de uma nova era para os Caddos, trazendo mudanças significativas em suas vidas à medida que entravam em contato com os europeus e sua cultura.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

Após a independência dos Estados Unidos da Grã-Bretanha, a expansão para o oeste começou e os colonos e pioneiros se aventuraram no território situado entre os rios Mississippi e Vermelho, anteriormente pertencente aos franceses. Com a compra da Louisiana, realizada sob a presidência de Thomas Jefferson, a exploração das vastas terras a oeste ganhou impulso. Em 1804, Jefferson encomendou a famosa Lewis and Clark Expedition, cujo objetivo era explorar o rio Missouri e alcançar a costa do Pacífico. Além disso, em 1806, outra expedição menos conhecida, a Expedição Freeman e Custis, foi contratada para buscar as cabeceiras do rio Vermelho.

No entanto, a Expedição Freeman e Custis encontrou desafios significativos em sua jornada. Embora seu principal objetivo fosse encontrar as fontes do rio Vermelho, eles tiveram que enfrentar um obstáculo notável em seu caminho: a Grande Jangada, uma formidável barreira natural no rio ao norte de Natchitoches. A descrição feita por Freeman é reveladora, descrevendo a Grande Jangada como uma massa densa e quase impenetrável composta por cedros, choupos e ciprestes, todos cobertos por arbustos e matagais tão espessos que “um homem poderia andar sobre ela em qualquer direção”. A vegetação densa tornava praticamente impossível a navegação e exploração do rio, representando um desafio formidável para a expedição.

Freeman e seus companheiros foram forçados a recuar depois de serem repelidos pelas tropas espanholas na região de Oklahoma. Eles ficaram convencidos de que nenhum esforço humano seria capaz de desalojar a Grande Jangada do rio. A natureza selvagem e intocada da região do rio Vermelho apresentava um cenário desafiador para os exploradores e colonizadores, destacando a resistência e a grandiosidade da paisagem natural.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

Comerciantes corajosos não se deixaram intimidar pela Grande Jangada e decidiram explorar as águas do rio Vermelho em busca de rotas que levassem ao território do Arkansas. Essa busca era especialmente importante, considerando que o Exército dos EUA havia estabelecido várias fortificações nessa região, e encontrar rotas fluviais poderia economizar tempo e dinheiro em relação às vias terrestres.

No entanto, a presença da Grande Jangada gerou controvérsias e desafios para o comércio e o desenvolvimento da região. Alguns argumentavam que a barreira criada pela jangada prejudicava o comércio e dificultava o desenvolvimento econômico. Além disso, acredita-se que a presença da jangada fortalecia o controle comercial das tribos indígenas locais, ao mesmo tempo em que desencorajava a colonização branca.

Em 1828, o Congresso dos Estados Unidos tomou uma decisão significativa e alocou 25.000 dólares para a remoção da Grande Jangada. A remoção dessa barreira natural se tornou uma prioridade para permitir o fluxo do comércio e fomentar o desenvolvimento da região.

Apesar das tentativas anteriores mal sucedidas de limpar o congestionamento de troncos no rio, um homem apareceu com uma convicção surpreendente de que a Grande Jangada poderia ser removida com sucesso. Esse indivíduo mostrou-se determinado a enfrentar o desafio e superar os obstáculos apresentados por essa imensa barreira natural.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

O capitão Henry Miller Shreve, do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA, desempenhou um papel crucial na remoção da Grande Jangada e na abertura do rio Vermelho para a navegação. Ele foi um inventor habilidoso e capitão de navio a vapor, e é creditado por acabar com o monopólio dos barcos a vapor Fulton-Livingston. Em 1832, Shreve assumiu o cargo de superintendente da Western River Improvement e iniciou o desafio de remover a Grande Jangada.

Utilizando barcos de sua própria fabricação e uma força de trabalho composta por 200 homens, Shreve lançou-se ao ataque na Grande Jangada. Ele adotou uma estratégia determinada para soltar as árvores e detritos que compunham a jangada, além de cavar canais e restaurar o fluxo nas margens do rio. Sua perseverança e expertise em navegação fluvial possibilitaram o sucesso nessa difícil empreitada.

Graças aos esforços incansáveis de Shreve, em 1838, o rio Vermelho foi aberto para a navegação até o local onde hoje se encontra a cidade batizada em sua homenagem, Shreveport. Com o rio aberto para a navegação, os barcos a vapor de Nova Orleans passaram a estar regularmente envolvidos no comércio nessa região.

A partir de Shreveport, os barcos a vapor navegavam por uma série de lagos até chegar a Jefferson, que em pouco tempo tornou-se uma das cidades portuárias mais importantes do Texas. O trabalho de Shreve não apenas facilitou o comércio e o desenvolvimento da região, mas também transformou as perspectivas econômicas e culturais das comunidades ao longo do rio Vermelho.

Great Raft, a Grande Jangada do rio Vermelho
Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

Manter o rio Vermelho livre de troncos provou ser um esforço contínuo e desafiador que ocupou o Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA ao longo de três décadas. Somente em 1872, o Corpo de Engenheiros, liderado pelo tenente Eugene Woodruff, retomou efetivamente os esforços para abrir novamente o rio Vermelho.

Para realizar esse trabalho, Woodruff contava com uma ferramenta confiável inventada por Shreve: o barco com serras a vapor, que já havia sido usado com sucesso para limpar o rio em ocasiões anteriores. Além disso, Woodruff tinha à sua disposição uma nova e poderosa ferramenta que não estava disponível na época de Shreve – a nitroglicerina.

Antecipando a ocorrência de futuras inundações, Woodruff e sua equipe de engenheiros realizaram dragagem do canal, criaram reservatórios e construíram barragens para controlar o fluxo do rio. Essas medidas visavam não apenas garantir a navegabilidade do rio, mas também reduzir o impacto das cheias e das mudanças naturais do curso do rio.

Infelizmente, Eugene Woodruff não teve a oportunidade de testemunhar a conclusão bem-sucedida do projeto. Em agosto de 1873, ele contraiu febre amarela e faleceu em Shreveport. Sua morte foi uma perda significativa para a continuidade dos esforços de engenharia e para a conclusão da abertura do rio Vermelho. No entanto, seu trabalho e dedicação foram fundamentais para pavimentar o caminho para o progresso contínuo da região e para facilitar o comércio e o desenvolvimento das comunidades ao longo do rio Vermelho.

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Crédito da foto: Noel Memorial Library, LSUS

As mudanças implementadas por Shreve e Woodruff no rio Vermelho, incluindo o uso de explosivos, máquinas a vapor e alterações no canal, tiveram impactos significativos além da melhoria na navegação. A integridade geológica do vale do rio Vermelho foi transformada permanentemente. Os níveis de água nos lagos das jangadas começaram a diminuir, e ao longo do tempo, somente os lagos onde foram construídas barragens conseguiram sobreviver.

Apesar dos altos investimentos em dragagem do rio, eclusas e represas, a navegação fluvial começou a declinar rapidamente em cerca de uma década, principalmente devido ao advento de um novo e mais eficiente meio de transporte: as estradas de ferro. As ferrovias proporcionaram um transporte mais rápido e confiável, tornando-se uma opção preferencial para o comércio e o transporte de mercadorias.

Com o avanço das ferrovias, a importância da navegação fluvial no rio Vermelho diminuiu significativamente. Na metade do século seguinte, já eram raros os barcos que navegavam no rio. Apenas barcaças locais e rústicas eram vistas atravessando o Rio Vermelho.

Essas mudanças representaram uma transformação profunda na paisagem e na economia da região do vale do rio Vermelho. O declínio da navegação fluvial impactou as comunidades e o comércio que dependiam desse meio de transporte. As estradas de ferro emergentes se tornaram o novo pilar do transporte e do desenvolvimento econômico, moldando a forma como as pessoas viajavam e se conectavam comercialmente.

Essa história é um exemplo do constante dinamismo da economia e da tecnologia, e de como as mudanças nos meios de transporte podem remodelar a paisagem econômica de uma região. O Rio Vermelho, uma vez crucial para o comércio e desenvolvimento, viu seu papel transformado ao longo do tempo, refletindo a evolução e as demandas da sociedade em constante mudança. Hoje, as antigas rotas fluviais talvez sejam mais lembradas por sua importância histórica do que por sua relevância econômica atual.

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Crédito da foto
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Fontes: 1 2

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