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La Mancha de Dom Quixote

Entre muitos nobres atributos, cabe à literatura traduzir e eternizar, no mundo sem fronteiras da ficção, os sentimentos dos homens de seu tempo. De todos os heróis nascidos dos livros, dotados das maiores virtudes ou defeitos, talvez nenhum tenha conquistado o carisma e a popularidade de Dom Quixote de La Mancha.

La Mancha de Dom Quixote
Ilustração de Dom Quixote e seu fiel escudeiro

O mistério de tamanho encantamento com o cavaleiro concebido pelo espanhol Miguel de Cervantes no começo do século 17 é a sua pureza, sua inabalável capacidade de sonhar. Sátira inteligente dos romances de cavalaria, que exaltavam os feitos dos guerreiros medievais, o livro revela as desventuras de dom Afonso Quijano, um fidalgo decadente e romântico que vê aos poucos todos os seus ideais sucumbirem diante de um mundo medíocre e mesquinho.

Montado num pangaré, Rocinante, e amparado pelas posições pragmáticas de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, Dom Quixote viaja pelos caminhos do interior da Espanha, desvendando novas paisagens, desafiando moinhos para duelos, desencantando-se com as pessoas que encontra. Mas não perde a esperança. Justamente porque resiste no limiar entre a fantasia e a realidade – como todos nós, ainda hoje, mais de 400 anos depois.

La Mancha de Dom Quixote
Moinhos de vento em Consuegra entre Toledo e São Clemente | Crédito da foto

Cervantes e Quixote, criador e criatura, nasceram em La Mancha, a vasta planície que cobre boa parte da Espanha central, ao sul da capital, Madri. Foi no cenário manchego, feito de castelos medievais, pueblos isolados, bosques verdejantes, estalagens e moinhos gigantes que Cervantes inseriu o personagem – apenas em certo momento do livro o cavaleiro estende suas andanças até Barcelona, na Catalunha.

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Casa de Miguel de Cervantes | Crédito da foto

As paisagens, contudo, mudaram muito em La Mancha nos últimos quatro séculos. Não restam mais sinais dos bosques de onde Quixote partiu em busca de Dulcinéia, sua amada que vivia no povoado de El Toboso. As matas deram lugar a uma planície ondulada, de amplos horizontes e campos cultivados, que se prolonga monótona até as montanhas na fronteira da Andaluzia, região sul do país que sofreu forte influência da colonização árabe. Na virada do primeiro milênio, esse trecho do interior espanhol era pobre e misterioso, moradia incerta de colonos desgarrados e pastores de ovelhas. Por isso os mouros o batizaram Al Mansha, “terra seca, selvagem”.

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Consuegra abriga os moinhos que Dom Quixote via como monstros | Crédito da foto

Com cerca de 20.000 quilômetros quadrados, Castela-La Mancha é a maior das dezessete comunidades autônomas que formam o território espanhol. Mas a área onde se desenrola a história de Quixote é bem menor. Seu epicentro é Alcázar de San Juan. Nos arredores espalham-se várias cidades menores que abrigaram as aventuras do “cavaleiro da triste figura” – e aquelas que não são mencionadas diretamente no livro reivindicam tal honra das longas pesquisas feitas pelos estudiosos da obra, os cervantistas.

A ligação mais clara entre ficção e vida real está em El Toboso, o lar de dona Ana Martínez Zarco de Morales, a mulher que teria inspirado Cervantes a criar a figura de Aldonza Lorenzo, a Dulcinéia, amada do cavaleiro. Hoje, a casa onde Ana morava, bem preservada, tornou-se um museu da cultura manchega.

La Mancha de Dom Quixote
Escultura de Dom Quixote e Ducinéia em El Toboso | Crédito da foto

Sem árvores a produzir sombras nas ruas estreitas e desertas, cheias de casas simples caiadas de branco, El Toboso e a vizinha Campo de Criptana parecem sofrer de um abandono e uma solidão paralisantes. São sensações que sintetizam também o cotidiano de Consuegra, Mota del Cuervo, Belmonte (onde fica um magnífico castelo do século 15) e Argamassila del Alba, entre outras referências urbanas de Quixote.

La Mancha de Dom Quixote
Entrada de Argamasilla de Alba | Crédito da foto

La Mancha só perde essa identidade provinciana nas suas cidades principais – caso de Toledo, um dos mais importantes monumentos históricos do país. Nos pueblos, os dias sucedem-se modorrentos, sem sobressaltos aparentes. Talvez pela lembrança perene de Quixote, sua gente parece de Quixote, sua gente parece incapaz de exorcizar o passado. Como todos os jovens partem para estudar nos grandes centros, os idosos compõem a população majoritária.

Movidas pelo forte catolicismo, as viúvas, por exemplo, guardam ali luto eterno. À exceção das rápidas saídas para ir à igreja ou ao mercado, raramente deixam a casa, a não ser para varrer na calçada a poeira do tempo, que horas depois estará no mesmo lugar, dia após dia, séculos após século.

La Mancha de Dom Quixote
Monte Calderico e os moinhos de Consuegra | Crédito da foto

Tem sido assim desde o tempo em que Miguel de Cervantes viveu ali, deslumbrado, como todos os outros camponeses locais, com a imponência dos moinhos manchegos, engenhos que captavam a força do vento para moer trigo e cevada. Essas fabriquetas de farinha foram inventadas no século 16, apenas trinta anos antes de o livro ser publicado. Ao descrevê-las em primeira mão, Cervantes foi um cronista da tecnologia da época, o que confere também um peso jornalístico à obra.

La Mancha de Dom Quixote
Ilustração de Dom Quixote

Erguidos sobre montes descampados, com suas pás imensas movendo-se ao sabor do vento, os moinhos eram construções admiráveis. Causavam assombro e instigavam a imaginação dos viajantes. Dom Quixote confundia-os com gigantes. Chegou a duelar com eles, numa célebre passagem do livro cujo cenário, segundo os cervantistas, teria sido Campo de Criptana.

O episódio dos moinhos de vento, onde o louco cavaleiro investe sua lança contra as imensas pás rodantes de um moinho, tendo como testemunha o atônito e fiel escudeiro, ocupou apenas uma página e meia, de um só pequeno capítulo, dentre os 126 divididos nos dois volumes publicados entre 1605 e 1615, em cerca de 700 páginas, acabou se tornando um fragmento a própria metáfora da loucura e prova da genialidade do autor.

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Moinho Caballero del Verde Gabán | Crédito da foto

O conjunto de dez moinhos no alto do Monte da Paz é hoje uma atração turística da cidade, mas os camponeses preservaram a utilidade do engenho até os dias sangrentos da Guerra Civil Espanhola, que começou em 1936. “Os moinhos pertenciam à prefeitura. Pedíamos autorização para moer o trigo. Depois, com a Segunda Guerra, eles ficaram inativos de vez. Ainda bem que não foram destruídos”, recorda um morador local de Consuegra, outra cidadezinha manchega famosa por seus belos moinhos. Curiosamente, foi apenas com a aposentadoria dos moinhos, depois das guerras, que o povo de La Mancha conquistou uma qualidade de vida melhor.

Depois de saírem do anonimato com as aventuras de Dom Quixote, paragens como Mota del Cuervo, Belmonte e Puerto Lápice viveram uma agonia que durou séculos. Sem opções de trabalho para seus moradores, quase sumiram do mapa. A volta por cima só aconteceu com a reestrutura da economia e da agricultura e a exploração do turismo na região, a partir da década de 50.

Referência unânime entre a crítica literária, que o consagrou como um protótipo do romance moderno, Dom Quixote ostenta ainda a honra de ser a obra de ficção mais traduzida de todos os tempos – só a Bíblia foi editada num número maior de línguas. Esse caráter universal é acentuado no Museu Cervantino, em El Toboso.

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Campo de Criptana | Crédito da foto

Guardadas ao longo de séculos, ali se encontram centenas de edições em 43 idiomas distintos, entre eles o basco, o persa, o hebraico e o esperanto. Algumas são verdadeiras relíquias, como o primeiro livro composto com a técnica da fototipografia. Mas o grande tesouro do museu são as edições enviadas, com longas dedicatórias, por chefes de Estado e outras personalidades mundiais. Saudando o bravo Quixote, deixaram suas rubricas expostas na pacata Toboso figuras do quilate de Nelson Mandela, Alec Guiness, Margareth Thatcher e Lech Walesa. E também Francisco Franco, Benito Mussolini e, pasme, Adolf Hitler…

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Castelo de Argamasiella | Crédito da foto

Essa adoração une o passado ao presente e faz parte da missão histórica de Dom Quixote – a atemporalidade de seus sentimentos, afinal, sempre foi sua marca indelével. Na prática, porém, a melhor lembrança do cavaleiro nas infinitas planícies de La Mancha são mesmo os moinhos. Apenas um deles, em Consuegra, ainda funciona. Seu maquinário é ativado todos os anos, no outono, na festa que a cidade organiza para comemorar a colheita do açafrão.

La Mancha de Dom Quixote
Casa del Medrano, lugar que se acredita que Miguel de Cervantes começou a escrever Dom Quixote | Crédito da foto

Em outro bom momento da festa, há uma disputa entre os apanhadores para ver quem consegue despetalar mais rápido a flor da plantinha roxa introduzida na região pelos mouros. Como só pode ser colhida manualmente, ela é uma das especiarias mais caras do mundo.

O melhor açafrão da Espanha nasce nas terras manchegas, ao lado de vinhedos e campos de girassóis, trigo e frutas. Há também um famoso queijo de leite de ovelhas. Com um certo jeitão caipira, ingênuo, estóico, a região de solo fértil preserva assim as qualidades de seu mais amado personagem. Não à toa, como apontam os mapas e a História, La Mancha está no coração da Espanha.

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Escultura em Villanueva de los Infantes | Crédito da foto

A Espanha Imortal

Os lugares e caminhos de Dom Quixote pelos campos de La Mancha

Toledo – A mais famosa cidade de La Mancha, apesar de não ter muita importância no livro. Construída pelos romanos no alto de uma colina sobre o Rio Tejo, é uma referência da História da Espanha.

Alcázar de San Juan – Segundo os estudiosos, aqui teria nascido Dom Quixote. É o centro geográfico de La Mancha. No Museu do Fidalgo, recursos interativos e audiovisuais se somam a ótimos textos para mostrar como viviam os nobres da época.

La Mancha de Dom Quixote
Belmonte | Crédito da foto

Puerto Lápice – Aqui fica a estalagem onde Dom Quixote foi sagrado cavaleiro. O lugar tornou-se um famoso restaurante.

Campo de Criptana – Os moinhos da cidade são provavelmente aqueles contra os quais Quixote luta. Havia quarenta deles no século 16. Hoje, restam dez, todos bem preservados.

El Toboso – O lar de Dulcinéia, a amada de Quixote. O personagem teria sido baseado em dona Ana Martinez Zarco, paixão de Cervantes. Com bela arquitetura, abriga o Museu Cervantino, com mais de 500 edições em 73 línguas de Quixote e a Casa-Museu Dulcinéia, recriação de uma mansão manchega da época do livro.

La Mancha de Dom Quixote
Toleto | Crédito da foto

Argamassilla del Alba – Os cervantistas consideram essa pequena cidade como o principal ponto de residência de Quixote. Mantém intacta a caverna da Casa de Medrano, onde, para alguns biógrafos, Cervantes ficou preso e iniciou Quixote.

Lagoas de Ruidera – Famosa já nos tempos de Cervantes, são 14 lagoas dentro de um parque natural. Narra a história da senhora Ruidera, cujas filhas e sobrinhas foram transformadas em lagos por um mágico. No parque fica também a Gruta de Montesinos, cenário de três capítulos de Quixote – que, por isso, é considerado um dos pais da espeleologia.

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Lagoas de Ruidera | © Credits to iStock/AlbertoLoyo

O gênio de uma obra só

Miguel de Cervantes nasceu em La Mancha, na cidade de Alcalá de Henares, em 1547 – um tempo glorioso para a Espanha, então um país muito rico e com grande influência cultural na Europa. Filho de barbeiro errante e uma mulher do campo, foi criado entre seis irmãos. Com uma infância humilde, Cervantes só conseguiu melhor instrução em Madri, quando passou a conviver com boêmios e artistas.

Seu espírito aventureiro o levou às Itália, onde serviu como soldado, e a lutar na histórica batalha de Lepanto, na Grécia, em nome da Santa Liga Cristã, contra os ímpios e hereges. Ferido e maltratado na guerra, perdeu as funções da mão esquerda e ganhou o apelido pejorativo de “manco izquierdo” ou “o manco de Lepanto“.

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Miguel de Cervantes | Crédito da foto

Em 1575, ele caiu prisioneiro dos turcos e foi parar em Argélia, onde ficou cinco anos até ser resgatado, tendo seu resgate pagos pelos familiares e amigos. De volta à Espanha, foi mais uma vez soldado do rei, pedindo baixa em 1584. Cervantes teve uma filha, Isabel de Saavedra, de um relacionamento casual em Madri, e casou-se com Catalina de Salazar no povoado de Esquivias, em La Mancha.

Ele era então um poeta menor, um dramaturgo subestimado e, apesar dos elogios recebidos pela novela La Galatea (1585), logo começaria quase quinze anos de errância pela Andaluzia. Sem dinheiro, foi trabalhar numa tarefa que ninguém queria – agente do tesouro real, percorrendo aldeias atrás de devedores relutantes.

É acusado de venda ilegal de trigo e preso em Córdoba. Suspeito também por desviar dinheiro e jurando inocência, amargou alguns meses na prisão em Sevilha, quando à luz da solidão e do tédio, começou a pensar em seu cavaleiro errante. Aos 57 anos, já fora da prisão, escreveu a novela El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de La Mancha, lançado em 1604, e que revolucionou a literatura da época, com uma prosa fluida e ideias universais.

La Mancha de Dom Quixote
Estátua de Miguel de Cervantes em Toledo | Crédito da foto

O livro não deixou Cervantes rico, mas bateu recordes de venda e soprou sobre ele uma fama imediata. Sancho e dom Quixote se tornaram personagens de cortejos e bailes já nos primeiros anos. Surgiu até, em 1614, uma continuação não autorizada de um tal Alonso Fernandez Avellaneda.

Nos dez anos que separaram as duas publicações, Cervantes pôde desfrutar de algum sucesso, mas pouco ou quase nada se comparado ao enorme sucesso editorial que a obra alcançaria nos anos seguintes. O livro foi tão cultuado mundo afora que a Biblioteca de Madri guarda hoje mais de 3.000 edições diferentes.

Ele morreu pobre, recolhido ao silêncio de um mosteiro franciscano, em abril de 1616, apenas um ano depois de concluir a segunda parte das andanças do cavaleiro melancólico e sonhador. Foi enterrado sem honras nem lápide, em Madri.

Desde 2011, uma busca pelos restos mortais de Cervantes cavou buracos no Convento das Trinitárias em Madri, construção centenária reconstruída por cima dos próprios escombros por vezes. Em 2015 veio a confirmação da ossada encontrada de Cervantes, sem DNA nem nada, mas com a convicção de um louco cavaleiro andante enfrentando moinhos de vento.

Texto adaptado da matéria publicada na revista Os Caminhos da Terra, edição 82. Outras fontes: 1 2

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