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La Morgue, o espetáculo da morte no necrotério de Paris

Turistas que visitam Paris hoje, provavelmente iriam passear na famosa Pont des Arts sobre o rio Sena, onde no passado milhares de cadeados eram afixados na cerca como símbolo de amor, colocados por casais apaixonados. Poderiam alongar a  caminhada até Notre Dame, talvez ir mais adiante um quilômetro e meio, onde chegaria no Louvre. Se estivesse em Paris na década de 1880, haveria uma atração totalmente diferente na qual quase certamente teria encontrado nas proximidades desses famosos marcos turísticos. Em guias impressos essa atração era considerada como o “único teatro gratuito de Paris”, ou o necrotério da cidade, também conhecido como La Morgue.

O necrotério abriu suas portas ao público em 1804 na Île de la Cité, antes de se mudar para um prédio novo e maior atrás de Notre Dame em 1864, onde atualmente fica um memorial. A localização do necrotério não foi por acaso: estando no epicentro de Paris e bem próximo ao Sena, sendo a instituição estar em boa posição para receber mortos e ‘vivos’. Muitos dos corpos que foram recolhidos nas ruas ou pescados no Sena, não eram identificáveis, por isso o público foi ostensivamente autorizado a entrar para ajudar na sua identificação.

La Morgue, o espetáculo da morte no necrotério de Paris
Necrotério de Paris, de Jean Henry Marlet. 
Foto: 
G.Garitan/Wikimedia Commons

Na época, Paris estava mudando rapidamente; se tornando uma cidade mais social e menos dividida por conflitos. Sigmund Freud a descreveu em 1885 como um lugar onde, “Eu não acho que eles saibam o significado de vergonha ou medo; as mulheres, não menos do que os homens, amontoam-se em torno da nudez tanto quanto em torno dos cadáveres no necrotério”. O necrotério apelidado de Le Musée de la Mort (O Museu da Morte) passou a ser um dos lugares para ver e ser visto e, como o local funcionava sete dias por semana, fechando apenas algumas horas por dia, muitos parisienses passaram a ser visitantes regulares junto com os turistas.

Teatro da morte

Ao chegar ao necrotério, os corpos eram despidos de suas roupas e inspecionados pelos patologistas. Depois transportados até a sala de exibição pública e colocados em lajes inclinadas de mármore preto. Até cinquenta visitantes de cada vez se aglomeravam em torno de grandes janelas com vista para os cadáveres, ficando boquiabertos e comentando sobre os corpos exibidos. Uma pequena toalha cobria as partes íntimas das pessoas mortas.

As roupas recuperadas das vítimas eram penduradas na parede de trás para ajudar na identificação. Como o necrotério não era refrigerado até 1882, água fria pingava de um cano acima de suas cabeças para desacelerar a decomposição, dando à pele das vítimas uma aparência úmida e inchada. O corpo assim duraria até três dias, após os quais eram retirados e, conforme a demanda, substituídos por molde de cera ou fotografia.

La Morgue, o espetáculo da morte no necrotério de Paris
Um vislumbre do interior do necrotério de Paris. 
Litografia de Theodor Josef Hubert Hoffbauer. 
Foto: 
Universidade Brown/Wikimedia Commons

Os jornais parisienses frequentemente especulavam sobre a identidade dos mortos; guias turísticos também direcionavam os visitantes ao necrotério; e alguns dos corpos acabaram ficando famosos, atraindo até 40.000 pessoas por dia. Homens e especialmente mulheres jovens mortas deitadas nuas nas lajes de mármore tornaram-se uma atração frequente e um tema muito comum na vida das pessoas naquela época. Muitas das vezes, a polícia encenava ‘confrontos’ públicos entre um suspeito de assassinato e na frente de um cadáver, muito parecido com alguns programas sensacionalistas da televisão hoje em dia.

Os parisienses “vitorianos” tinham um apetite tremendo pelo sensacionalismo e pelo mórbido, e os jornais forneciam o alimento, revolvendo histórias especulativas sobre o último crime com detalhes sinistros que o público engolia com zelo. Assim que terminaram de ler sobre um assassinato no jornal, iam direto ao necrotério para ver o corpo da vítima em carne e osso. Frequentemente, esses passeios eram assuntos de família, pois o necrotério era um local de reunião social onde pessoas de todas as classes e gêneros se misturavam. Mesmo as crianças não eram poupadas desse ritual macabro.

La Morgue, o espetáculo da morte no necrotério de Paris
O interior do Morgue de Paris em 1845. Foto: 
pariscemeteries.blogspot.com

L’Inconnue de la Seine

O cadáver mais famoso a sair do necrotério de Paris, e que ficou conhecida por L’Inconnue de la Seine (a mulher desconhecida do Sena) era uma mulher que teria sido pescada no Sena na década de 1880, após uma tentativa de suicídio bem-sucedida. Chegando ao necrotério com um sorriso de ‘Mona Lisa’ no rosto, um patologista ficou tão impressionado com sua beleza que fez um molde em gesso de seu rosto.

Em pouco tempo, o molde de gesso branco da mulher desconhecida começou a aparecer nas lojas de Paris e, nos anos seguintes, cópias da máscara tornaram-se um acessório em todas as casas boêmias da moda em toda a Europa. O sorriso enigmático da máscara enfeitiçou artistas, poetas e romancistas, e ao longo das décadas dezenas de poemas foram escritos e histórias inventadas para dar uma identidade à jovem, a Mosa Lisa afogada.

Um vislumbre do interior do necrotério de Paris. 
Foto:
G.Garitan/Wikimedia Commons

Apesar de suas origens serem desconhecidas, havia rumores de que ela poderia ter vindo da Alemanha, Rússia ou do Reino Unido antes de encontrar seu fim em Paris. Na década de 1960, seu fascínio continuava e inspirou o rosto do primeiro manequim de RCP (Ressuscitação CardioPulmonar), conhecido como Resusci Anne. Nos últimos anos, muitas dúvidas foram lançadas sobre a história de L’Inconnue de la Seine, especialmente por pessoas que trabalham com os mortos. Muitos acreditam que o rosto original para o manequim foi tirado de uma mulher viva.

O necrotério estava originalmente localizado no porão úmido e escuro da prisão Grand Châtelet, de onde foi transferido em 1804 para seu próprio prédio em Quai du Marche, na esquina da Pont St Michel, perto do rio. Este edifício tinha uma câmara de dissecação, uma sala de lavagem, uma sala para cadáveres identificados, uma câmara de armazenamento para os corpos e a importante sala de visualização que podia exibir até dez cadáveres de cada vez. 

Durante a reconstrução de Paris pelo Barão George Haussmann, o necrotério foi transferido novamente em 1864 para um prédio novo e mais espaçoso atrás da Catedral de Notre Dame. O necrotério tornou-se mais extravagante e ainda mais acessível ao público. Uma cortina foi instalada sobre a janela de vidro, que foi fechada quando os corpos eram trocados, como se fechasse as cortinas de um palco de teatro.

Embora o necrotério ficasse aberto sete dias por semana, entrar nunca era fácil, especialmente quando havia um cadáver em exibição. Em 1876, o corpo decepado de uma mulher foi retirado do Sena, aparentemente assassinado por seu amante. A descoberta causou sensação na mídia e, nos dias que se seguiram, entre 300.000 a 400.000 pessoas entraram no necrotério para ver seus restos mortais. 

Para muitos de nós, o voyeurismo e a obsessão mórbida pela morte podem parecer uma emoção barata, comparável ao fascínio da Grã-Bretanha vitoriana pela execução pública, embora neste caso seja a vítima e não os perpetradores do crime que estão em exibição. Mas os escritores contemporâneos viam o necrotério como uma instituição cívica com um propósito, e os espectadores como indivíduos preocupados movidos pela empatia e um forte senso moral.

Morte e propriedade

Na virada do século 20, algumas pessoas começaram a questionar a moralidade dessas exibições vulgares. Após uma campanha pública contra essas exibições e a mudança gradual das atitudes públicas em relação à exibição de cadáveres, preocupações com a higiene e a propagação de doenças, o necrotério de Paris fechou suas portas ao público em 1907.

O fechamento do necrotério gerou reclamações de empresas locais, vendedores ambulantes e jornalistas. Podemos olhar para trás e nos perguntar como o povo de Paris pôde olhar para os corpos inchados e degradados de seus semelhantes e não ser afetado, apenas para lembrar que a morte estava muito mais perto deles do que de nós. 

Pessoas ainda eram executadas em público até 1939, a pneumonia e a gripe ainda eram uma causa comum de morte, a mortalidade infantil era alta e a maioria das pessoas morria em casa. À medida que a ciência médica melhorava, pessoas de todas as idades começaram a sobreviver em maior número e a morte lentamente desapareceu de vista, sendo mais frequentes em hospitais e hospícios.

La Morgue, o espetáculo da morte no necrotério de Paris
Pessoas visitando o necrotério em Paris para ver os cadáveres. 
Foto: 
Coleção Wellcome/Wikimedia Commons

Isso não quer dizer que não tenhamos nossa própria atração pela morte hoje. A exposição Body Worlds surpreendeu o mundo quando estreou em Tóquio em 1995. Os cadáveres inodoros e plastinados que viajaram pela Ásia, Europa e América podem ter sido higienizados em comparação com os mortos do século 19, mas os visitantes estavam igualmente ansiosos para vê-los.

Como o necrotério de Paris, as exposições Body Worlds foram acusadas de imoralidade, dessacralização dos mortos e de tratar a morte como um espetáculo. Como resultado da controvérsia, diferentes legislações foram aprovadas em todo o mundo sobre o uso de restos mortais, sendo a legislação no Reino Unido conhecida como Human Tissue Act 2004. Mesmo assim, apesar de todas essas acusações, o fascínio continua, com mais de 40 milhões de visitantes anuais visitando as exposições do Body Worlds.

Fontes: 1 2

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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