Histórias

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

A imagem de Aylan Kurd, o menino sírio de três anos cujo corpo apareceu na praia turca de Bodrum, tornou-se num dos símbolos mundiais dos milhares de refugiados que todos os anos morrem tentando chegar à Europa. Com os problemas no continente europeu, volta a tona um acontecimento de 1991, quando um navio que ficou conhecido como “La nave dolce“, chegou com 20.000 refugiados num porto da Itália.

Nos anos 1980, as reformas de Mikhail Gorbaxhev da União Soviética trazem grandes mudanças dentro do bloco comunista e a partir de 1989, os regimes comunistas da Europa caem um após o outro e alguns anos após a morte do ditador Enver Hoxha, a Albânia passava por momento difíceis, com o povo desesperado, querendo uma vida melhor.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

Em 7 de Agosto de 1991, o cargueiro Vlora, construído em 1960 estava manobrando para descarregar açúcar vindo de Cuba no porto de Durres, na Albânia. Durante a manobra, do nada, surgiu uma multidão no cais. A cada momento, mais e mais gente invadia o porto e a coisa saiu do controle. A multidão desesperada invadiu o navio e sua tripulação foi ameaçada de morte se não seguisse imediatamente para a costa da Itália. O Capitão Halim Milaqi, argumentou que o navio Vlora estava com o motor em condições precárias e precisando de reparo. Mas ninguém lhe deu ouvidos, apostando que aquilo era “má vontade”. O navio defeituoso seguiu viagem abarrotado de refugiados albaneses, zarpando com nada menos que 20 mil pessoas à bordo, entre eles estavam mulheres, crianças e idosos.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

Navegando apenas com seus motores auxiliares, sem um radar e com excesso de peso, o navio também perdeu seus tubos de resfriamento depois que os invasores os abriram para tentar se hidratar, com o capitão usando água do mar para evitar a derretimento do motor. O navio avariado se aproximou da costa italiana apenas vinte e quatro horas depois. Mas em Brindisi as autoridades se negaram a permitir que o  “Vlora” aportasse. Começava ali um impasse que duraria dias e culminaria com a morte de várias pessoas.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

O capitão do navio então mudou de rumo para Bari, a apenas 55 milhas de distância, que o navio enfraquecido levou sete horas para chegar. Durante esse período, pouco havia sido feito para se preparar para essa chegada em massa, tanto a polícia quanto o superintendente estavam de férias, enquanto o gabinete do prefeito só foi avisado quando o navio já estava no porto. Foi feita uma tentativa de bloquear a entrada do porto usando pequenos navios e a fragata da Marinha para tentar forçar o capitão a retornar à Albânia.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

O navio zarpara sem nenhuma preparação e isso incluía a ausência total de água e comida. As pessoas estavam famintas e estavam fazendo suas necessidades fisiológicas em todos os lugares do navio. O capitão no rádio disse as autoridades italianas, que a situação a bordo do navio estava desesperadora, porque a água havia acabado e o calor era insuportável e o navio precisando de reparos urgentes. As pessoas estavam se comportando como ratos. Há relatos de pessoas tão desesperadas de sede que beberam água do mar. Diante do caos, a gestão portuária se rendeu e o navio teve permissão para atracar no cais.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

A Itália não estava preparada para um evento inesperado como aquele. O Governo italiano precisava de agilidade para gerenciar e identificar nada menos que 20.000 visitantes inesperados. As autoridades começaram a transportar os imigrantes para o Stadio della Vittoria, um estádio fora de uso, onde eles seriam mantidos até a deportação. Na tarde em que os albaneses entenderam que eles seriam mandados de volta para casa, grupos deles tentaram abrir caminho através do cordão policial em torno do estádio, com muitos conseguindo fugir, as autoridades então decidiram parar de trazer qualquer mais pessoas para o estádio e fechando os portões, trancando-os por dentro.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

Quando os passageiros do Vlora descobriram os planos italianos, as revoltas começaram e a polícia local não foi capaz de lidar com a multidão faminta. A situação se descontrolou ainda mais, o zelador do estádio foi efetivamente mantido como refém até que a intervenção do prefeito, o pessoal que supervisiona a manipulação de alimentos foi agredida e a polícia então evacuou o estádio, deixando-o como uma zona sem lei controlada por refugiados violentos (alguns armados com armas de fogo). Comida e água foram literalmente jogados por sobre as paredes pelas autoridades usando um guindaste de caminhão de bombeiros.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

As autoridades italianas finalmente conseguiram organizar sua resposta à crise dos refugiados, requisitando balsas particulares, a primeira – a Tiziano – chegando no dia 9, para transportá-los de volta à Albânia, onde também enviaram dois navios da Marinha para ajudar. Alguns das pessoas mais revoltadas foram levados para o aeroporto e levados de volta para a Albânia sendo escoltados por certa de sessenta militares e policiais. No meio da tarde, cerca de 3.000 foram repatriados, alguns foram embora voluntariamente, pois a recepção hostil e as más condições os deixaram desiludidos com a vida na Itália, a maioria foi informada, que os navios e aviões supostamente iriam levá-los a outras cidades italianas.

No dia 11, cerca de três mil albaneses ainda permaneciam no estádio de Bari, principalmente os refugiados que não ficaram convencidos pelas autoridades. Depois de três dias, os remanescentes foram informados de que haviam conquistado o direito de permanecer na Itália, no entanto, assim que saíram do estádio, foram colocados em ônibus e levados para o aeroporto, de onde foram levados diretamente para Tirana.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

O que é mais curioso neste caso dos albaneses, é que não havia uma ameaça clara para desencadear esta onda. Toda a Europa testemunhou as cenas dramáticas, captadas nos noticiários da televisão, mostrando os albaneses sendo expulsos por funcionários italianos. Embora o repatriamento era legalmente justificado, a maneira em que a operação foi conduzida era problemática.

A grande maioria dos albaneses, de acordo com seus relatos do êxodo, fugiram de seu país por se sentirem “enterrados vivos” lá. Eles explicaram que, em algum momento um boato se espalhou de que a Itália estava disposta a receber refugiados. Quando a notícia de que era possível deixar a Albânia se espalhou, caminhões lotados de refugiados começaram a chegar aos portos, e na correria que se seguiu, os navios e suas tripulações foram forçados a zarpar.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

De acordo com o relato do capitão Milaqi, o navio permaneceu no porto de Bari por 45 dias antes de sua tripulação e ele mesmo conseguirem levá-lo de volta à Albânia (é possível que ele tenha sido rebocado devido ao dano pesado que sofreu). Ele teria continuado a capitanear o navio de carga até dezembro de 1994 e o navio em operação até 1995. O Vlora foi finalmente foi desativado em 1996 e destruído em agosto do mesmo ano no porto turco de Aliaga.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

Tudo sugere que aquilo que atingiu a Albânia foi uma forma de psicose em massa. É difícil determinar se esta psicose foi desencadeada deliberadamente, e embora rumores sugerem que este era o caso, não há nenhuma evidência conclusiva para suportar isto cientificamente. A história de Vlora é lembrada como um dos muitos episódios da onda de imigração que ocorreu em Itália 1990-1992 e permanece até hoje, sendo o maior desembarque de refugiados ilegais que já chegaram à Itália.

O problema dos refugiados albaneses persiste até hoje, mas a coisa vem se amplificando com os novos refugiados da Líbia, Síria e de outros lugares que buscam abrigo na Europa. Infelizmente, parece um problema sem solução, que vem dividindo a Europa sobre como lidar com o êxodo de pessoas desesperadas.

Vlora, o navio de refugiados La Nave Dolce

Texto originalmente publicado em outubro de 2015

Fonte: 1 2

Postagens por esse mundo afora

Avalie este artigo!
[Total: 0 Média: 0]
Atenção! Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do usuário e não expressa a opinião do site.

Magnus Mundi

Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

1 comentário

Clique para deixar um comentário