Lugares Histórias

Trilha Inca, um dos maiores feitos de engenharia nas Américas

No Peru, todo mundo pode ser lançar à procura de cidades perdidas, inteiramente construídas em ouro e prata. Ou em simples pedra. Bastam um pouco de ousadia , coragem, determinação e pernas e braços fortes. Se o historiador americano Hiram Bingham pôde encontrar, em 1911, uma cidade inca, deserta e escondida no alto de uma montanha – Machu Picchu -, é bem possível que outras ainda estejam lá, escondidas na selva.

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Todos os anos, muita gente tenta encontrar um dos possíveis Eldorados da civilização inca. Há registros de expedições, em busca do ouro dos reis lendários Manco Cápac e Tupac Amaru, que nunca mais voltaram. Mas a grande maioria retorna com muitas histórias. E conta com uma ajuda dos próprios construtores da cidades de ouro: na direção de Machu Picchu, saindo de Cuzco (como em quase todo o Peru, Bolívia, Chile e outros três países), a fantástica civilização inca deixou uma rede de estradas chamadas “Great Road” ou Capac Ñac, como os incas a conheciam, postos de controle e comunicação que podem ser usados ainda hoje.

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Entre Cuzco e Machu Picchu, a Trilha Inca (também conhecida como camino inca ou camino inka) transformou-se no mais belo exemplo dessa rede. Ninguém sabe exatamente o que se esconde fora da trilha de pedras encaixadas, à beira de precipícios, que nos dias atuais – dado o grande número de estrangeiros que percorre seus 36 quilômetros, todos os anos – é conhecida também por gringo trail.

Seu destino está razoavelmente perto: são só cinco horas de viagem de Cuzco até o quilômetros 88 da estrada de ferro, onde está Qorihuaytachina, uma estação que é só uma plataforma de pedra e quase mais nada em volta (a não ser um posto de turismo). Há povoados por perto, é claro, mas a estação serve basicamente a quem vai enfrentar a trilha. Bem, em frente encontra-se a sua entrada para a aventura.

Patallacta
Patallacta vista de cima | Crédito da foto

A Trilha Inca, consiste em três trilhas sobrepostas: mollepata , classic e one day. Mollepata é a mais longa das três rotas com o maior passo de montanha e cruza com a rota clássica antes de cruzar Warmiwañusqa (mulher morta), que se assemelha a uma mulher deitada. Localizada na Cordilheira dos Andes, a trilha passa por vários tipos de ambientes andinos, incluindo floresta nublada e tundra alpina.

Assentamentos, túneis e muitas ruínas incas estão localizados ao longo da trilha antes de terminar no Portão do Sol na montanha de Machu Picchu. As duas rotas mais longas exigem uma subida para além dos 4.200 metros acima do nível do mar, o que pode resultar em doenças da altitude.

Trilha dos incas, um dos maiores feitos de engenharia nas Américas
Patallacta | Crédito da foto

Há poucos anos, a entrada da trilha era um pouco mais interessante: consistia de um simples cabo de aço doze metros acima do rio Urubamba, violento e cheio de pedras – a queda significaria morte certa. Havia um pedaço de madeira, sustentado por quatro tirantes que eram ligados ao cabo: tratava-se de ficar em pé na prancha e, com as mãos, impulsionar-se até o outro lado.

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Um velho índio explorava o “serviço” (cobrava menos de um dólar) e puxava a madeira de volta a cada passagem. Ele apenas repetia o que seus antepassados faziam para atravessar o rio – só que, quando os incas viviam ali, usava-se um cabo de capim entretecido, cuja técnica ainda é conhecida dos índios e tão forte como aço, que apenas é mais prático. Depois, a coisa modernizou-se: alguém interessado em incrementar o turismo construiu uma ponte e a diversão acabou.

 Conchamarka
Conchamarka |Crédito da foto

Mas a trilha permanece do mesmo jeito que no tempo dos incas. É uma satisfação poder ver as bicas que matavam a sede de civilizações passadas, conservadas como se ainda estivéssemos no século 15; e aquedutos antigos, que levavam água das nascentes para sabe-se lá que cidades de sonho do antigo império. Água existe em todo lugar, assim como os ventos que silvam fortemente e penetram na roupa grossa.

Em pontos determinados da trilha – em geral, o suficiente para uma caminhada de um dia -, encontram-se os tambos, que na velha língua inca queria dizer apenas “hospedaria”. É exatamente isso que é um tambo: uma construção destinada a receber viajantes que querem parar, comer, se proteger do vento e se refazer para caminhar mais um dia. Ali, habitavam incas funcionários públicos, cuja atribuição era levar adiante mensagens passadas de tambo em tambo.

Cruzando floresta na trilha
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É aí que você vai andar. Você se sente como um verdadeiro inca verificando o caminho desses dignos antepassados da humanidade. Passa pela aldeia e ruínas de Llactapata, um local usado para funções religiosas e cerimoniais e sobe a trilha, margeando o rio Cusichaca até Huayllbamba, a 3.000 metros de altitude. Parece bastante alto, mas não é: trata-se apenas de um teste para os próximos quilômetros, que levarão ao passo de Warmiwanuska, de 4.200 metros de altura.

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Na pequena aldeia de Wayllapampa (planície relvada) a trilha cruza com a “Trilha Mollepata” a 3.000 metros. Pequenos assentamentos permanentes estão localizados ao lado da trilha, e Wayllapampa tem aproximadamente 400 habitantes (130 famílias) espalhados por essa parte da trilha.

O primeiro problema a se temer – às vezes já na cidade, antes da partida – é o soroche, o mal da montanha que não escolhe vítimas: mesmo um atleta, muito bem preparado, pode sentir seus efeitos, constantes de náuseas, forte pressão na nuca, dor de cabeça, hemorragia pelo nariz e, eventualmente, até febre e ataques do coração.

tambo Runkuraqay
O tambo Runkuraqay | Crédito da foto

Os índios quíchuas não têm esses problema porque a natureza cuidou de tudo: desenvolveu-lhes o tórax, e pulmões enormes que lhes dão mais oxigênio por metro cúbico de ar inspirado; e garantiu em circulação um volume maior de sangue e mais glóbulos vermelhos. Pernas e braços são curtos, para reduzir a distância a que o coração deve enviar o sangue. Eles estão em casa.

Sayacmarca
Sayacmarca | Crédito da foto

Por isso mesmo, os nativos parecem correr, mesmo quando o caminho fica tão estreito a ponto de, na prática, sumir no meio da vegetação rasteira. Normalmente, a trilha não passa de um metro e meio de largura; mas, às vezes, durante alguns minutos, anda-se às cegas sem saber se está afastando da trilha. Nesses momentos é preciso seguir a intuição: logo, a trilha reaparece, com limo sobre seu calçamento bem feito de pedras perfeitamente encaixadas, sem um pingo de argamassa, mas sólidas no chão.

Wiñaywayna
Wiñaywayna, mostrando estruturas superiores e inferiores | Crédito da foto

Enfim, a caminhada é dura, principalmente se pretende manter algum ritmo e completar a trilha nos quatro dias regulamentares. Naturalmente, você pode querer sair um pouco da trilha. É a melhor parte, porque então descobrem-se ruínas que os turistas comuns não veem, fotografam-se flores e pássaros que ninguém percebe, escutam-se sons inaudíveis para quem está interessado apenas em folclore, não em aventura.

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A hora de comer pode ser a menos interessante da caminhada. É preciso encontrar um lugar abrigado, abrir a mochilas, fazer fogo e preparar a comida, em geral não muito mais do que macarrão instantâneo, chocolate, frutas secas, biscoito, queijo e o pão dos incas, que é duro e não muito saboroso, mas pode ser guardado por longo tempo. A batata empedrada também é uma boa saída: ela é lavada pelos índios, à noite, e deixada ao relento por vários dias para pegar o orvalho da noite e o sol violento da manhã. Desse modo, conservam-se por anos e fazem sopas gostosas e consistentes.

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Quando se fica sem comida nenhuma, a selva fornece brotos de samambaia e frutas – basta saber diferenciar as que são venenosas ou tóxicas – e animais como o venado (espécie de cervo), raposinha e o vizcaya, animal da região montanhosa do Peru que parece um coelho com rabo de esquilo. Se for o caso de parar na casa de um nativo, ele pode oferecer um prato de cuy, espécie de porquinho-da-índia, considerado o prato mais saboroso do Peru. Não se deve molestar lhamas e seus primos, as alpacas, guanacos e vicunhas. Eles fornecem lá e montaria e costumam morder, escoicear e cuspir, com especial predileção para ataques se o estranho for um homem branco.

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De qualquer jeito, é preciso descobrir como andar direito na selva; um bom tênis, agasalho contra o frio das alturas e o passo sempre no ritmo da respiração. É preciso “entender” o seu próprio passo, para adaptá-lo à respiração. Evita-se falar demais, para não cansar.

E toca-se em frente. Quatro dias depois, se tudo der certo, com o corpo arrebentado, mas a alma limpa, finalmente avista-se o imponente espetáculo da cidade de Hiram Bingham: Machu Picchu, quer dizer “Pico Velho”, em quíchua, em contraposição a Huayana Picchu, a “Montanha Jovem”, que fica do outro lado da cidade arqueológica. É a hora de respirar fundo, relembrar o caminho duro e contemplar a beleza misteriosa de Machu Picchu. Há um trem que faz isso em horas. Mas não é a mesma coisa.

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Devido à sua popularidade, o governo peruano instituiu vários controles para reduzir o impacto humano na trilha e dentro da cidade antiga. O mais notável é um sistema de quotas, introduzido em 2001, segundo o qual apenas um número definido de pessoas (incluindo caminhantes, carregadores e guias) poderia caminhar ao longo da Trilha Inca todos os dias. Este sistema ainda está em vigor; Qualquer pessoa que pretenda percorrer a Trilha Inca deve obter uma autorização prévia. A partir de 2016, quinhentas licenças são emitidas para cada dia.

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Todas as licenças do ano são liberadas em janeiro e são vendidas por ordem de chegada. As licenças são vendidas rapidamente, principalmente para a alta temporada. A maioria dos operadores aconselha os caminhantes a comprar licenças o mais rápido possível depois de serem liberados. O governo também determinou que todos os caminhantes da trilha devem ser acompanhados por um guia. Devido a essa regra, as permissões só podem ser obtidas por meio de um operador turístico registrado pelo governo. Todas as autorizações estão emparelhadas com um passaporte individual e não são transferíveis. O governo monitora a Trilha Inca de perto; Existem vários pontos de controle ao longo da trilha.

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O mistério de Machu Picchu

Durante séculos, a neblina e a vegetação cobriram essa cidade, embora ela esteja a pouco mais de 100 quilômetros de Cuzco. Quando, no século 16, os espanhóis chegaram à capital do Império Inca, nem a tradição oral guardava qualquer traço da cidade perdida. Só mesmo o gosto pela aventura fez o explorador Hiram Bingham (1875-1956) penetrar na selva para procurar um Eldorado que, afinal, existia. Até hoje, por falta de história, não se sabe o que era Machu Picchu. Talvez fosse um misto de centro urbano e sentinela.

As ruínas de Inti Punku na Trilha Inca
As ruínas de Inti Punku na Trilha Inca | Crédito da foto

Que foi um grande núcleo, não há dúvida, como mostra o que restou da cidade: 216 habitações de pedra, provavelmente da nobreza e dos sacerdotes. Não há vestígios das casas populares, de adobe e madeira, que naturalmente foram destruídas pelos séculos. Mas em volta há um grande número de sítios arqueológicos, indicação de que a região era densamente povoada: Machu Picchu seria o centro de uma grande área metropolitana (o império inca chegou a ter, segundo historiadores, até dezesseis milhões de habitantes).

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No cemitério da cidade, porém, só foram descobertos 173 corpos, a maioria de mulheres. Dizem os historiadores que é bem possível que a cidade tenha sido dizimada por uma epidemia ou por uma guerra, ou pelas duas. Isso explicaria o fato de não ter subsistido nenhuma tradição oral porque, pela tradição inca, as tragédias não deviam ser registradas. A cidade está praticamente na rota de uma fantástica estrada inca de 5.000 quilômetros que ligaria Quito a Cuzco.

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Quem chega de trem, de Cuzco, ainda tem de enfrentar uma emocionante subida de 407 metros em micro-ônibus, pela carretera Hiram Bingham, com oito quilômetros de extensão. No alto, fica a cidade com seus templos, palácios e setores residenciais. O conjunto mais impressionante é o da Plaza Sagrada, em cujo ponto mais alto está o Intihuatana, um único bloco de pedra acinzentado, destinado à adoração do Sol – o intihuatana “amarrava” o Sol, nas celebrações dos solstícios, para impedir que ele se afastasse da Terra.

O Sol era o deus mais importante dos incas, porque fazia nascer a comida de uma terra praticamente inóspita. Especula-se que os incas refugiram-se nas terras altas do que hoje é o Peru para evitar tribos guerreiras das planícies próximas ao mar. É só especulação: as pedras de Machu Picchu guardam para si todas as explicações.

Gráfico de elevações na Trilha Inca
Gráfico de elevações na Trilha Inca | Crédito da foto
Império Inca
Império Inca

Fontes: 1 2 3

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