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Rei Carlos, o louco: O rei da França que pensava ser feito de vidro

Carlos VI da França, também conhecido como Carlos, o Louco, reinou de 1380 a 1422. Sua governança foi marcada por períodos de insanidade, incluindo a crença de que era feito de vidro.

Na Europa dos séculos XV a XVII, destacava-se um peculiar fenômeno conhecido como “Homens de Vidro”, sendo o rei Carlos VI da França (em francês, ele é conhecido como Charles VI) um dos mais notáveis e excêntricos representantes. Governando de 1380 a 1422, o monarca sofria de uma estranha convicção: acreditava ser feito de vidro. Temendo que seu corpo pudesse quebrar ao toque humano, impôs restrições severas, proibindo seus cortesãos de se aproximarem e vestindo-se exclusivamente com roupas especialmente reforçadas.

No entanto, a insanidade do rei precedia essa bizarra convicção. Em 1392, liderando seu exército pela floresta de Le Mans, um incidente marcante ocorreu. Um homem local ousou abordar o rei, advertindo sobre uma traição iminente. Apesar de ser agredido e afastado, o episódio deixou Carlos impressionado. Mais tarde, durante a jornada, um simples descuido de um pajem ao deixar cair a lança real desencadeou a fúria do rei, que, tomado por paranoia, acusou traição e atacou seus próprios cavaleiros, resultando na morte de quatro deles.

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Carlos VI atacando seus cavaleiros, nas Crônicas de Froissart

Esse episódio, marcado pela raiva descontrolada e paranoia do rei, teve consequências nefastas, alimentando conflitos entre os duques da Borgonha e os soberanos franceses. Este evento tornou-se um pretexto para um conflito de 85 anos, contribuindo para as desastrosas consequências e prolongando a Guerra dos Cem Anos. A vida de Carlos VI ficou marcada pela memória desse terrível ato, destacando-se como um capítulo sombrio na história europeia.

No ano seguinte, uma tragédia assolou a corte real. Em 28 de janeiro de 1393, durante o terceiro casamento de Catarina de Fastaverin, dama de companhia de Isabel da Baviera, esposa de Carlos VI, o rei e cinco companheiros decidiram participar da celebração vestidos como “homens selvagens”, uma representação grotesca meio humana e meio bestial, usando trapos e peles enxaguadas. Enquanto dançavam, uma faísca, acidentalmente iniciada por Luís I, Duque de Orleães e irmão de Carlos, incendiou um dos trajes. O fogo se alastrou rapidamente, consumindo quatro dos dançarinos vivos.

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Coroação de Carlos VI de França representado por Jean Fouquet nas Grandes Chroniques de France, em meados do século XV

O rei Carlos VI escapou da tragédia graças à intervenção providencial da Duquesa de Berry, que o protegeu com sua saia, evitando que fosse envolvido pelas chamas. Este fatídico evento ficou conhecido como “Bal des Ardents” (Baile dos Ardentes), ou em inglês, “Baile dos Homens Ardentes“.

Uma ilustração do século XV nas Crônicas de Jehan Froissart, criada por Philippe de Mazerolles, retrata vividamente esse momento. Na imagem, a Duquesa de Berry protege Carlos VI no canto inferior esquerdo, enquanto os dançarinos tentam em vão salvar suas roupas em chamas. Um dos dançarinos consegue se jogar em uma banheira de água, possivelmente Ogier de Nantouillet, o nobre cavaleiro que foi salvo juntamente com o rei Carlos VI.

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O Baile dos Ardentes em gravura do século XV das Crônicas de Froissart. A duquesa de Berry prende suas saias azuis sobre o pouco visível Carlos VI de França, enquanto os dançarinos rasgam suas roupas em chamas.

Após esses dois eventos terríveis, o rei Carlos VI foi assombrado por acessos selvagens e destrutivos de raiva pelo resto de sua vida. Sua convicção de que era feito de vidro era apenas uma das muitas peculiaridades perturbadoras. Na época, com vinte e cinco anos de idade, os trágicos incidentes do Baile dos Ardentes lançaram uma sombra terrível sobre a família real e a corte. O rei e seu irmão foram obrigados a emitir desculpas públicas pela morte dos quatro inocentes.

Carlos VI frequentemente não reconhecia seus filhos e sua esposa, às vezes atacava seus servos sem motivo aparente ou se entregava a choros inconsoláveis. Governando (muitas vezes por meio de regentes) por mais de 42 anos na França, o monarca provavelmente sofria de esquizofrenia paranóica. Alternava entre períodos de pura loucura e outros em que exibia um comportamento praticamente normal.

Rei Carlos, o louco: O rei da França que pensava ser feito de vidro
Carlos VI da França

A insanidade de Carlos VI agravou-se com o tempo. Após a derrota na Batalha de Azincourt, o rei assinou o tratado de Troyes, deserdando seu filho Carlos VII e reconhecendo o direito ao trono de Henrique V da Inglaterra, marido da filha de Carlos. Henrique, aliado dos duques da Borgonha, que estavam em conflito com a coroa francesa desde o primeiro surto de loucura de Carlos, tomou posse de vários territórios franceses.

A situação só mudou com a intervenção decisiva de Joana d’Arc, em 1429, que libertou a França e restaurou o reinado a Carlos VII de Valois, filho de Carlos VI. Carlos VII reinou até 1462. O reinado de Carlos VI foi marcado por tumultos e tragédias, deixando um legado sombrio na história da monarquia francesa.

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Baile dos Ardentes pelo Mestre de Antônio de Borgonha (c. 1470), que mostra um dançarino no tonel em primeiro plano, Carlos VI encolhido sob a saia da duquesa de Berry no centro esquerdo, e dançarinos no centro queimando

Carlos VI não estava sozinho em sua crença de ser feito de vidro, sendo apenas um dos casos mais exaltados e famosos dessa peculiar condição que afligia várias pessoas na Europa entre os séculos XV e XVII. Além dele, outras histórias relatam indivíduos que acreditavam ter ossos, cabeças, braços ou corações de vidro, evidenciando a presença desse problema em textos médicos e literários da época.

Entre essas narrativas, destaca-se um caso de alguém convencido de que suas nádegas eram feitas de vidro e que sentar-se resultaria em sua quebra em um milhão de pedaços. Outro caso curioso envolveu o temor de sair de casa, pois a pessoa receava que um vidraceiro tentasse derretê-la para criar uma peça de vidro. Um trágico episódio relatou um “Homem de Vidro” que viajou para Murano, ilha italiana conhecida por seus vidros, na esperança de entrar em uma fornalha e ser transformado em uma taça, acabando por falecer queimado.

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Gravura intitulada “Fogo em um baile de máscaras” das Crônicas de Froissart, pelo Mestre de Getty Froissart (c. 1483, Bruges)

A explicação médica contemporânea atribui esses casos a uma forma de “melancolia”, uma condição comum na concepção medieval do corpo humano. No entanto, também havia uma visão mágica associada à fabricação do vidro, considerada uma espécie de alquimia. A transformação da areia em cristal e sua suposta propriedade de rachar ao toque de veneno eram vistas como poderes místicos, acima dos metais preciosos.

A comparação entre o corpo humano e uma taça de vidro, ambos sujeitos a quebras quando cheios de veneno, refletia essa perspectiva. Um relatório sobre a fabricação de vidro veneziano expressou a natureza mística do material, considerando-o como resultado de um processo alquímico semelhante ao “fogo purificador”. Os “Homens de Vidro” viam-se como produtos desse trauma, destruídos e refeitos pelas chamas.

Surge a especulação se o rei Carlos VI foi moldado pelas chamas da Dança dos Homens Ardentes, tornando-se, metaforicamente, um “homem de vidro”. Sua doença, com diversas manifestações psicóticas, incluindo a crença em sua fragilidade de vidro, provavelmente foi herdada por seu sobrinho Henrique VI da Inglaterra, tornando-se uma das causas que facilitaram o conflito dinástico conhecido como “Guerra das Duas Rosas”.

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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