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Triora, a terra das bruxas na Itália

A Comunidade de Triora, mais conhecida como Terra das Bruxas ou Cidade das Bruxas, é uma pequena vila medieval com 420 habitantes no “Valle Argentina” com cerca de 780 metros de altitude, na região da Ligúria, província de Imperia, perto da fronteira francesa, na Itália. A vila é tão antiga que vestígios arqueológicos atestam a presença da vida humana na região, no período Neolítico Médio, entre cerca de 3.800 e 3.000 a.C.

Triora sobre o Monte Saccarello
Triora sobre o Monte Saccarello

Seu nome vem do latim “Tria Ora”, referindo-se às três mandíbulas do mitológico Cerberus – o cão infernal, guarda do submundo, do reino de Hades, que representam tradicionalmente, os três produtos da economia local: trigo, castanhas e uvas. Tal entidade aparece num mosaico no piso da praça central da vila e também no brasão municipal. 

Construída, estrategicamente, no cume do Monte Saccarello, em torno do ano 1000, foi habitada pelos lígures e, sendo o centro de um intenso tráfego comercial entre o Piemonte, a costa mediterrânea e a vizinha França. Foi uma importante aliado da República de Gênova, decorrendo aos anos de opressão ao povo com impostos altos, que eram pagos com trigo e vinhos ao governo anterior.

Placa na entrada da cidade
Placa na entrada da cidade

Com a proclamação da independência da Ligúria, a vila chefiou a jurisdição até a queda de Napoleão, em 1814, sendo transferida, no ano de 1860, para o reino italiano, já que pertencia à França. Como sendo um lugar que praticamente parou no tempo, ainda é visível as marcas dos bombardeios causados pelas tropas alemãs na Segunda Guerra Mundial.

A vila conserva a magia de um passado obscuro e grande parte da arquitetura na vila remonta ao século 12, mas seu período de maior fama foi durante o século 16, quando uma série de julgamentos de jovens mulheres foram conduzidas pela Inquisição e queimadas vivas entre 1587-1589.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

Por cerca de dois anos, a vila sofreu com uma terrível escassez de alimentos, hoje sabe-se que esse período de escassez deveu-se, em parte, a uma manobra econômica de alguns proprietários de terras para aumentar o preço do trigo, mas as pessoas tentaram encontrar um bode expiatório.

Em outubro de 1587, os líderes da aldeia, de acordo com o Conselho de Anciãos, decidiram que a tragédia que se abateu sobre a região era o resultado da maldade de um bando de mulheres locais, que comungavam com o satanás.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

A acusação recaia sobre mulheres que exerciam a prática de cura com ervas e poções, parteiras e outras que chamavam a atenção apenas por sua beleza, que “enfeitiçava” os homens. Eram, em sua maioria, indivíduos desafortunados e pobres que viviam em Cabotina, um aglomerado sombrio de casas na encosta da montanha, ao leste de Triora.

Gênova enviou a vila, o padre inquisidor Girolamo del Pozzo, que imediatamente confirmou as acusações dos moradores, dizendo: “que se podia sentir a presença do maligno por toda a vila“. Durante a celebração da missa, o padre pediu aos paroquianos que denunciassem às bruxas. Vinte mulheres foram presas e, devido a tortura sofrida, logo se tornaram trinta.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Se pode encontrar ruelas medievais por toda a cidade

Casas da vila foram requisitadas e transformadas em prisão, a mais famosa delas foi a casa da família Meggio, hoje chamada Cá de Baggiure ou Casa delle Streghe (Casa de Bruxa). Entre elas, treze mulheres, quatro adolescentes e uma criança confessaram e se declararam culpadas. Como foi adquirida essa confissão, a história não conta.

Em um curto espaço de tempo, ocorreram as primeiras mortes: Isotta Stella, de sessenta anos, morreu ao ser torturada, enquanto uma segunda mulher conseguiu escapar descendo por uma janela, mas acabou caindo e morrendo.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

Ninguém reclamou quando um bando de mulheres miseráveis sem um centavo foram acusadas de feitiçaria, mas as coisas mudaram rapidamente quando as acusações se espalharam sobre algumas pessoas influentes da sociedade de Triora. O Conselho dos Anciãos, essencialmente composto de proprietários de terras, mostrou sua perplexidade em relação ao julgamento quando as primeiras “matronas” de Triora foram presas.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Ruínas de Cabotina, área mais pobre da cidade de onde saiu a maioria das pessoas acusadas de bruxaria

O ódio e a inveja pessoal estavam se espalhando ao ponto de se colocar no mesmo nível, diante da inquisição, nobres, prostitutas e marginalizados. Os dois inquisidores não conseguiram concluir o julgamento devido ao súbito aumento das acusações contra todas as classes sociais da região.

O drama de Triora estava apenas começando. O governo de Gênova interveio pessoalmente no assunto. O bispo de Albenga, Dom Luca Fieschi, pediu explicações a Girolamo del Pozzo sobre seu trabalho através de uma carta. Entre os dois começou um breve relato epistolar que não alterou o destino das mulheres presas ainda aguardando julgamento.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

Girolamo alegou a presença do maligno como elemento de apoio de sua defesa; ao mesmo tempo, o Conselho de Anciãos também retirou suas dúvidas anteriormente expressas, reafirmando seu apoio ao trabalho dos inquisidores. Os historiadores levantam a hipótese de uma garantia verbal de Girolamo sobre o destino dos nobres e a promessa de não estender as acusações aos notáveis ​​locais.

Entretanto, o processo diminuiu; em janeiro de 1588, os dois inquisidores saíram de Triora, deixando para trás uma situação dramática. A partir daqui, é uma sucessão de cartas ao governo genovês e pedidos de ajuda que não foram ouvidos.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Estátua em homenagem as bruxas de Triora

Em junho de 1588, Gênova enviou um comissário chamado Giulio Scribani, que exacerbou o clima de terror, transferindo as mulheres presas para Gênova e fazendo de tudo para encontrar novas vítimas. Pouco depois de chegar a Triora, ele disse: “Estou aqui para limpar este lugar de qualquer seita diabólica“.

E foi justamente o que fez e as acusações feitas contra os suspeitos eram: crime contra Deus, comungação com o diabo e assassinato de mulheres e crianças. Novos interrogatórios e torturas começaram, aos quais quase sempre pessoas inocentes foram submetidas. Essa perseguição também se entendeu a região distantes, como Castel Vittorio e Sanremo, onde outra caça às bruxam começou.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

A operação de Giulio Scribani foi considerada excessiva pelas autoridades de Gênova, que começou a duvidar da vericidade das alegações de bruxaria em Triora: havia simplesmente bruxas demais para ser verdade. O bispo exigiu objetividade e enviou oficiais para controlar o trabalho de Giulio.

Eles confirmaram muito o que já era suspeito, mas decidiram lavar as mãos, pois era uma questão que, estritamente falando, não competia ao Estado, mas com a Inquisição da Igreja Católica, poderosa na época. Giuliu Scribani continuou seu trabalho e muitas outras mulheres inocentes foram acusadas e executadas no decorrer dos meses.

Cabotina
Cabotina

Quando o trabalho de Giulio saiu de controle novamente, ele foi afastado e posteriormente excomungado. A igreja decidiu acabar com os julgamentos em Triora, em agosto de 1589. Após essa data, ninguém mais havia sido preso, torturado e acusado de bruxaria. As pessoas que foram presas e enviadas a Gênova nunca mais voltaram e não se sabe o que aconteceu com elas.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

As mulheres acusadas de bruxaria, na verdade, reconheciam ervas medicinais e as manipulavam, transformando-as em remédios e óleos e assim, curavam os enfermos que as procuravam. Tal tradição eram passadas de mães para filhas, de geração em geração e isso bastou para que algumas delas fossem acusadas de fazerem feitiçarias, criarem pragas, fome, e até mesmo, cometerem infanticídio.

Essas curandeiras foram tão importantes no passado, que atualmente são lembradas como as verdadeiras rainhas do país e todo ano, no domingo depois do dia 15 de agosto, acontece a “Strigora“, um dia de festa dedicados a elas.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

A vila de Triora homenageia as mulheres mortas inocentemente desde 1988, quando começou a usar seu passado obscuro para atrair turistas a região. A administração ergueu uma estátua de uma simpática bruxa sorridente com sua vassoura, em frente a um caldeirão, numa praça da cidade e sinalizou pontos de interesse por todo o município.

Com a crescente popularidade da vila e o interesse relacionado com às bruxas do passado, os moradores de Triora começaram a ter orgulho da história local, mesmo que esta tenha sido negra e sombria. E essa história molda as pessoas de Triora até hoje, onde o desconhecido, o sobrenatural de outrora é visto atualmente com simpatia. A bruxa moderna mais famosa da Itália atualmente é Angela-Maria Zuchetto, colunista e apresentadora de um programa de televisão no país, mora nas proximidades de Triora, em Molino di Triora.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

A fachada da loja da apresentadora é decorada com ervas e ramos de carvalho, e vende todo tipo de objetos e artigos de bruxarias, bem como, ervas e outras substâncias para as mais diversas receitas e poções. Angela-Maria é descendente de Francescina Chioceto, que foi acusada de feitiçaria em 1588. Na vila existe uma associação, onde todos os seus membros são descendentes das pessoas acusadas e executadas.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

No centro da aldeia se localiza o Museu Regional de Etnografia e Bruxaria, num edifício de três andares, onde estão guardados os antigos documentos e os objetos mais importantes da história da cidade. No passado, o andar inferior do museu abrigava uma das prisões onde as mulheres acusadas eram mantidas até seu julgamento e posterior execução.

O museu exibe cópias dos documentos do processo, e reproduções em cera, das cenas de interrogatório e torturas imputadas às mulheres para que confessassem seus supostos crimes.

Vista da região
Bela vista que se tem da área circulante, a partir de Triora

Os turistas podem visitar vários lugares históricos pela região, tais como: Lagodégnu, um pequeno lago fora dos muros da cidade, formado pela cascata do Rio Grugnarolo que flui para o córrego Argentina. Suas margens rodeado de florestas, é mencionado nos processos de julgamento como um dos locais de encontro das supostas bagiues (bruxas). Não muito longe dali, está Ciàn der Préve, um campo com vista para a ponte medieval de Mauta, também um lugar preferido pelos praticantes de bruxarias.

Ruínas de Cabotina
Ruínas de Cabotina

Outros lugares interessantes são a casa de lavagem pública de Noce e a fonte Campomavùe. Segundo a lenda local, dessa fonte emana água com poderes terapêuticos e diuréticos, e tais características de cura, foram dadas pelas bruxas do passado. Já o Monte delle Forche, se acredita ser o local, onde as bruxas coletavam a “mandrágora”, planta essa que a lenda diz ter nascido da semente de um enforcado.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália
As bruxas homenageadas com uma estátua

Também se pode visitar o Walnut, um antigo carvalho, considerado a árvore favorita das bruxas. Cabotina, localizada fora das muralhas, era a área mais pobre da vila naquela época, e atualmente, um dos lugares mais visitados de Triora. Provavelmente, ali só morassem mulheres solteiras, prostitutas e camponesas, que foram as primeiras vítimas dos inquisidores.

Becos e túneis em Triora
Becos e túneis em Triora

Há uma série de eventos e festivais folclóricos que ocorrem na cidade. São três festivais anuais: Festival Feitiçaria e Adivinhações de Verão, em agosto e outras duas celebrações no outono: o Festival do Cogumelo em setembro e o Dia das Bruxas, no final de outubro, onde as ruas da vila são iluminadas por velas e os habitantes e visitantes se vestem de acordo. Há também um congresso internacional sobre bruxarias, que acontece a cada quatro anos.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Por toda a cidade pode-se encontrar esculturas em alto e baixo relevo. Algumas remontam ao século 12

Triora não é apenas fascinante devido ao mistério que ronda a aldeia, na realidade andando pelos becos, sob arcadas e arcos esculpidos em pedras e antigas entradas dilapidadas, se têm a sensação de ter voltado no tempo. Belos portais góticos do século 12, com os brasões das famílias nobres podem ser vistos por toda a cidade ou as ruínas da antiga torre cilíndrica do castelo que data de 1.100. A vila também tem 23 moinhos d’água, uma igreja barroca do século 15, e o Santuário de Nostra Signora della Montà, que preserva pinturas valiosas.

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

Triora, a Terra das Bruxas na Itália

Cenas da prisão
Figuras em cera, representando inquisidores e pessoas presas, aguardando o julgamento, estão expostas no museu da cidade
Triora, a Terra das Bruxas na Itália
La Strega – “A Bruxa”, obra de Christopher Marzaroli de uma senhora sentada. Escultura feita em 1867
Lojas vendendo artigos típicos
Lojas vendendo artigos típicos
Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Durante a Strigora se pode encontrar pessoas usando chapéus pontudos lendo a sorte dos viistantes.
Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Encenações feitas por ocasião da Strigora
Triora, a Terra das Bruxas na Itália
Um boneco do museu mostrando como eram amarradas as mulheres e posteriormente torturadas, com seus braços e pernas sendo puxados
Uma das salas do museu da cidade
Uma das salas do museu da cidade

Artigo publicado originalmente em maio de 2015

Site oficial: Comune di Triora

Fontes: 1 2 3

Leia também: Salem, capital mundial das bruxas

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