Histórias

Um escravo de Magalhães talvez tenha sido o primeiro a circunavegar a Terra

Um personagem esquecido no navio Victoria possivelmente chegou à sua terra natal antes que os europeus chegassem à deles. BIBLIOTECA DE IMAGENS NIDAY/ALAMY
Henrique de Malaca, escravo de Fernão de Magalhães, desempenhou papel crucial na primeira circum-navegação do globo. Seu conhecimento linguístico e cultural foi essencial para as expedições portuguesas no século XVI
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Um holofote destaca uma imponente estátua de bronze no centro de uma sala da renomada Galeria Nacional de Arte da Malásia. A figura retratada, representando Henrique de Malaca, encontra-se em uma postura descontraída, com cotovelos apoiados nas coxas, cabelos longos que caem graciosamente sobre os ombros, e veste trajes que evocam a imagem de um pirata ou dos primeiros exploradores. Uma placa colocada estrategicamente aos pés da estátua presta homenagem a Henrique, com a inscrição: “Em memória de Enrique de Malacca, cuja significativa contribuição foi vital para a primeira circum-navegação do mundo, 1511-1521“.

No entanto, a verdadeira extensão dessa contribuição requer esclarecimentos. Surpreendentemente ausente dos registros históricos, o nome de Henrique raramente é mencionado, se é que o é, apesar de sua papel fundamental na história das explorações terrestres.

Estátua em homenagem a Enrique de Malaca
Henrique não só foi provavelmente a primeira pessoa a dar a volta ao globo, como também pode ter sido fundamental na derrota dos colonizadores. | KATE MCMAHON

Ahmad Fuad Osman, o talentoso artista por trás do Projeto Memorial Enrique de Malacca, reflete sobre essa lacuna histórica: “A história muitas vezes omite eventos cruciais, escolhendo incluir apenas o que se alinha à narrativa desejada. Muitas coisas acontecem e não são registradas.

A narrativa de Henrique se entrelaça com a de Fernão de Magalhães, frequentemente creditado de forma equivocada como o primeiro circum-navegador global. De ascendência portuguesa, mas servindo aos espanhóis, Magalhães partiu para oeste de Sevilha em direção à América do Sul em 1519, liderando uma expedição com cinco navios. Em 1522, o navio Victoria retornou à Espanha com alguns tripulantes desanimados, marcando assim a conclusão da primeira volta completa ao redor da Terra.

Entretanto, é crucial ressaltar que Magalhães faleceu antes da conclusão da expedição, privando-o da realização pessoal de atravessar o mundo. O título de primeiro circum-navegador foi, portanto, conferido a seu co-capitão, Juan Sebastián Elcano, o único sobrevivente da jornada completa. Apesar disso, devido à liderança proeminente na expedição, o nome de Magalhães tornou-se mais reconhecido e reverenciado ao longo da história. Contudo, essa não é a narrativa completa, e é aqui que Henrique, um homem escravizado da Malásia, desempenha um papel fundamental.

Enrique fez uma longa jornada de dez anos navegando como um homem escravizado capturado por Magalhães.
Enrique fez uma longa jornada de dez anos navegando como um homem escravizado capturado por Magalhães. | KATE MCMAHON

Embora tenhamos algumas referências a Henrique em fontes primárias, é necessário recorrer à conjectura para reconstruir sua história”, explica o historiador e escritor John Sailors, autor do livro “Exploradores Improváveis de Magalhães: Histórias da Primeira Circum-navegação“. “No entanto, acredito firmemente que ele poderia muito bem ter sido a primeira pessoa a completar a circum-navegação do globo.

A trajetória de Henrique teve início uma década antes da famosa expedição de 1511, quando os portugueses invadiram a Malásia, saqueando sua capital, Malaca. Magalhães, que participara dessa conquista violenta, capturou Henrique, então com 11 anos, como escravo, trazendo-o de volta para Portugal. Anos mais tarde, quando Magalhães partiu da Espanha, levou consigo Henrique para atuar como intérprete durante a expedição.

A expedição tinha como objetivo inicial encontrar uma rota ocidental alternativa para as Ilhas das Especiarias, visto que as rotas orientais estavam majoritariamente sob controle português. Contudo, a jornada revelou-se desafiadora: o trajeto para o oeste era mais longo do que o planejado, e desastres ocorreram repetidamente, com grande parte da tripulação sucumbindo ao escorbuto e à fome durante a travessia pela América do Sul. Após dois anos, quando o navio finalmente alcançou as Filipinas, Magalhães perdeu a vida em uma batalha em Mactan, sendo atingido por uma flecha envenenada.

Magalhães morreu devido a uma flecha envenenada nas Filipinas.
Magalhães morreu devido a uma flecha envenenada nas Filipinas. 
BIBLIOTECA DO CONGRESSO/HATHITRUST/DOMÍNIO PÚBLICO

Poucos dias após a morte de Magalhães, a expedição enfrentou outra tragédia quando foi emboscada em Cebu, uma província filipina. Antonio Pigafetta, estudioso italiano e um dos poucos sobreviventes, relatou em seu diário que a emboscada teria sido tramada por Henrique. Pigafetta escreveu:

Nosso intérprete se recusava a desembarcar para obter os suprimentos necessários. Duarte Barbosa, o comandante do navio, informou-lhe que, embora seu mestre estivesse morto, ele não estava libertado de suas obrigações. Ao mesmo tempo, ameaçou puni-lo com açoites se não desembarcasse prontamente e não realizasse as tarefas essenciais para o serviço dos navios.

O testamento de Magalhães expressava claramente que Henrique deveria ser libertado após a morte do explorador, no entanto, conforme os relatos de Pigafetta, tornou-se evidente que os demais membros da tripulação não honraram esse pedido, ou talvez desconhecessem tal disposição. Henrique, por sua vez, agiu em conformidade, desembarcando como ordenado, mas posteriormente as circunstâncias tornaram-se complexas.

O escravo levantou-se e aparentou pouco se importar com as ameaças proferidas. Após desembarcar, dirigiu-se ao rei cristão local, informando que a expedição estava prestes a partir, mas, se ele seguisse o conselho de Henrique, poderia tornar-se o senhor de todos os bens da tripulação e até mesmo dos navios. O rei de Zubu (Cebu) acolheu favoravelmente a proposta, e juntos tramaram uma traição.

Magalhães e sua tripulação foram derrotados nas Filipinas, possivelmente com a ajuda de Enrique.
Magalhães e sua tripulação foram derrotados nas Filipinas, possivelmente com a ajuda de Henrique. | ÁLBUM/ALAMY

Durante um banquete com o rei Rajah Humabon de Cebu, a maioria dos membros da expedição foi brutalmente atacada, resultando em poucos sobreviventes. John Sailors, especialista na história da circum-navegação, ressalta que a traição de Henrique, conforme descrita por Pigafetta, é pura especulação.

O que fica claro é que Henrique estava em terra durante o massacre. A última linha do registro histórico sobre Henrique aconteceu quando os tripulantes restantes no navio gritaram para um companheiro ensanguentado em terra: “Perguntamos a ele o que havia acontecido com seus companheiros e o intérprete, e ele disse que todos haviam sido mortos, exceto o intérprete.” A expedição então partiu precipitadamente de Cebu, deixando Henrique e o ferido para trás.

Em seu último dia conhecido na história, Henrique estava vivo na ilha de Cebu, cerca de 2.000 quilômetros distante de sua terra natal, Malaca. Enquanto isso, a expedição espanhola encontrava-se a aproximadamente 15 mil quilômetros de distância de retornar para casa. Neste ponto, os historiadores se questionam: terá Henrique chegado em casa primeiro ou terá chegado realmente? A resposta a essa pergunta teria implicações históricas significativas.

Afinal, Henrique é a primeira pessoa documentada na história a viajar da Malásia para a Espanha e a América do Sul antes de retornar ao Sudeste Asiático, sendo visto pela última vez nas Filipinas. Para Henrique, um homem escravizado, essa foi uma longa jornada de dez anos.

Estátuas de Henrique e dos guerreiros que derrotaram Magalhães existem em muitos lugares do Sudeste Asiático, da Malásia às Filipinas.
Estátuas de Henrique e dos guerreiros que derrotaram Magalhães existem em muitos lugares do Sudeste Asiático, da Malásia às Filipinas. | ABDULLATIF HAMIDIN/FLICKR

Segundo Sailors, podemos, pelo menos, afirmar que Henrique foi a primeira pessoa a realizar uma circum-navegação linguística do globo. Ele completou um ciclo até um ponto onde sua língua nativa, o malaio, era falada, já que era a língua predominante no comércio da região. A questão que persiste é se essa jornada foi apenas uma circum-navegação linguística ou se ele percorreu todo o caminho.

Henrique finalmente teve a oportunidade de retornar para casa; se eu estivesse em seu lugar, teria feito todo o necessário para chegar lá”, afirmou Sailors. “Na época, Cebu era um ponto de convergência de diversas redes comerciais siamesas e chinesas. Seria relativamente fácil para Enrique embarcar em um navio com destino a Malaca, sua terra natal.” “Eu teria voltado para casa”, reforçou Osman. “Também existem indícios de que houve um comerciante siamês no primeiro encontro com o rei de Cebu, e este comerciante pode ter facilitado o retorno de Henrique a Malaca.

O papel de Henrique e sua posição na história são desafiadores de definir com precisão. Sua narrativa está envolta em inconsistências, lacunas no registro histórico e mencionada apenas de forma esporádica em relatos de terceiros. Nenhum documento produzido até agora consegue provar de maneira conclusiva suas contribuições.

No entanto, a história cativou o povo da Malásia, Indonésia e Filipinas, todos os quais defendem com orgulho Henrique como parte integrante de sua história e um herói a ser honrado. Várias pessoas nessas nações afirmaram ser descendentes dele, e Osman as entrevistou como parte do projeto do memorial, mesmo expressando ceticismo sobre a validade de algumas dessas reivindicações.

Por mais que a história esteja registrada em pedra, uma parte dela ainda está sujeita a debates, interpretações e reinterpretações a partir de novas perspectivas, especialmente quando se trata do legado esquecido e das realizações daqueles que foram escravizados.

É exatamente isso que Sailors e Osman estão trabalhando arduamente para preservar: “destacar uma figura perdida na história”, como afirma Osman. “[Meu trabalho] tem proporcionado a muitas pessoas a descoberta de uma história que nunca aprenderam na escola”, continua ele. “Além disso, se a história é sempre escrita pelos vencedores, quão verdadeira pode ser?” Essa questão instiga uma reflexão profunda sobre a veracidade e a riqueza de perspectivas nas narrativas históricas.

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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