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L’Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

L'Inconnue de la Seine é o nome dado a uma mulher cujo corpo foi encontrado no rio Sena, em Paris, em meados do século XIX, e que se tornou uma figura icônica.
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Em um momento que remonta ao final do século XIX, um evento trágico ecoou pelas margens do rio Sena, em Paris: o resgate do corpo de uma jovem. Desprovido de sinais de violência, o achado sugeriu uma triste realidade: ela havia, aparentemente, encerrado a própria vida. Tal desfecho não era incomum naquela época.

Anualmente, em média, cerca de duzentas pessoas são retiradas das águas turvas do Sena pela polícia fluvial de Paris, sendo que uma proporção significativa desse número corresponde a vítimas fatais, e quase metade dos resgatados são indivíduos que tentaram o suicídio. É importante notar que entre os suicidas, as mulheres jovens compõem a fatia mais representativa.

L'Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

Naquela época, quando um corpo identificado emergia das águas, era colocado sobre uma laje de mármore e exibido à vista do público, apoiado junto à janela do necrotério. Essa prática, talvez perturbadora aos olhos modernos, remete a uma época em que a morte e o castigo eram espetáculos populares na Europa. A macabra exposição de cadáveres atraía todos os estratos sociais, da juventude aos idosos, ao necrotério. Contudo, nenhum evento capturou tanto a imaginação dos parisienses naquele ano e nos subsequentes séculos quanto o suicídio dessa jovem misteriosa e bela.

A história relata que o  patologista de plantão ficou tão encantado com a expressão da menina e seu enigmático meio-sorriso que ele pediu a um mouleurs (moldador) que fizesse um molde de gesso de seu rosto.. Em pouco tempo, o molde branco da mulher desconhecida, com um sorriso reminiscente da Mona Lisa, começou a surgir nas vitrines das lojas parisienses.

Nos anos seguintes, réplicas da máscara tornaram-se uma presença constante em todas as casas boêmias da moda em toda a Europa. O enigmático sorriso da máscara encantou artistas, poetas e romancistas, inspirando dezenas de poemas e histórias inventadas para atribuir uma identidade à jovem desconhecida, a Mona Lisa afogada.

L'Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

Na novela de Richard Le Gallienne, The Worshipper Of The Image (O Adorador de Imagem, em tradução livre), de 1899, um poeta inglês se apaixona pela máscara, o que acaba desencadeando a morte de sua filha e o suicídio de sua esposa. O filme alemão de 1936, “Die Unbekannte“, sobre uma órfã seduzida por um amante rico e posteriormente abandonada, levando-a ao suicídio, foi inspirado nesta máscara mortuária.

Gerações mais tarde, quando o fabricante de brinquedos norueguês Asmund Laerdal teve que escolher um rosto para o seu manequim de treinamento de ressuscitação cardiopulmonar (RCP), ele recorreu à “Inconnue de la Seine” – a mulher desconhecida do Sena.

Na década de 1960, Asmund Laerdal foi abordado por Peter Safar, um médico austríaco pioneiro na técnica de RCP, para criar um auxílio de treinamento para essa técnica recém-inventada. Que era uma nova técnica que combinava compressões torácicas à respiração boca-a-boca, e o seu objetivo era salvar a vida de um paciente cujo coração parou ou de afogamento. Laerdal, que quase perdeu seu próprio filho por afogamento em 1955, estava especialmente receptivo à ideia.

Assim, Laerdal concebeu uma boneca feminina realista, modelando seu rosto na famosa máscara mortuária. Esta boneca, conhecida como Resusci Anne, tornou-se um dos produtos médicos mais reconhecidos da Laerdal e é amplamente utilizada em todo o mundo para treinar estudantes de medicina e paramédicos na técnica de reanimação boca a boca. Tal uso levou alguns a apelidarem a Resusci Anne como “a garota mais beijada do mundo”.

L'Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

Ao escolher essa máscara específica, Laerdal transformou a Resusci Anne em um memorial da desconhecida que se afogou no Sena. “Como ela não tem nome e permanece um mistério, nunca poderemos alcançá-la e contaminá-la… projetamos nossos próprios sonhos nela“, afirma a literatura da empresa Laerdal. Ao longo das décadas, surgiram questionamentos sobre a autenticidade do rosto da famosa máscara mortuária. Seria realmente o molde retirado do rosto de uma mulher afogada, ou teria sido moldado a partir de uma modelo viva, talvez um tanto desconcertada?

Pascal Jacquin, brigadeiro-chefe da Brigada Fluviale, responsável por resgatar corpos afogados no Sena, expressou surpresa: “É surpreendente ver um rosto tão pacífico”. Jacquin, que testemunhou mais cadáveres afogados do que qualquer outra pessoa em Paris, explicou que geralmente, os corpos encontrados na água, sejam afogados ou suicidas, não apresentam uma aparência serena. Estão inchados e não parecem bonitos.

L'Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

A morte por afogamento é violenta e mesmo os suicidas lutam pela vida no último momento. Geralmente, esses momentos finais de terror, dor e dúvida estão refletidos em seus rostos. No entanto, esta mulher, com seu rosto imaculado, parece mais estar adormecida, como se estivesse sonhando com algo encantador, observou Jacquin.

Consultados pela BBC, outros especialistas compartilharam a mesma opinião. Eles concordaram que a mulher retratada na máscara, conhecida como Inconnue, parecia saudável demais para ser uma representação fiel de um cadáver. Michel Lorenzi, proprietário de uma oficina de moldagem em Arcueil, um movimentado subúrbio de Paris, sugeriu que a máscara pode ter sido feita a partir de uma pessoa viva. “É muito difícil manter um sorriso enquanto o gesso está sendo retirado”, afirmou Lorenzi. “Acredito que ela era uma profissional, uma modelo muito habilidosa”.

Inspirações

O jornalista da BBC, Jeremy Grange, em 2013, relata ter duas outras possibilidades para o mistério envolvendo o rosto usado nos manequins de treinamento de RCP: A primeira surgiu algumas semanas após a exibição do programa da BBC em 2009. Durante uma visita ao estúdio do fotógrafo Edward Chambre Hardman em Liverpool, um local perfeitamente preservado da primeira metade do século XX, onde figuras importantes da época posaram para retratos, Grange se deparou com a máscara da Inconnue na parede da sala de espera. Inocentemente, ele perguntou ao guia quem era a jovem representada.

L'Inconnue de la Seine: A mulher desconhecida do Sena

Sem hesitação, o guia compartilhou a história de duas irmãs gêmeas idênticas, nascidas em Liverpool mais de um século atrás. Segundo ela, uma das irmãs se envolveu em um romance com um pretendente rico e fugiu para Paris, desaparecendo para sempre. Muitos anos depois, a outra irmã visitou Paris de férias e, ao caminhar por uma rua, ficou chocada ao ver a máscara da Inconnue pendurada do lado de fora de uma loja de moldagem.

Ela reconheceu imediatamente a jovem como sua irmã gêmea há muito desaparecida, condenada – ou abençoada – a permanecer eternamente jovem, enquanto sua irmã envelhecia. Essa história fascinou Grange, mais uma vez adicionando outra camada ao enigma em torno da Inconnue.

A segunda possibilidade vem de um artista baseado em Oxford chamado John Goto. Anos atrás, Goto decidiu criar sua própria ficção em torno do rosto. Ele descreveu em detalhes uma investigação que parecia autêntica – seguindo “pistas” que levaram à descoberta de um cartão postal do início do século, encontrado em uma loja em Buenos Aires.

Essa e outras evidências, supostamente, comprovaram sem deixar dúvidas a identidade da Inconnue – ela teria sido uma atriz húngara chamada Ewa Lazlo, assassinada por seu amante, Louis Argon. Goto compartilhou a história e suas “provas” online e iniciou outros projetos.

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O mistério continua

Para Grange foi intrigante encontrar detalhes do simpósio do Dia Europeu de Reinício Cardíaco, em Londres. Durante o dia, uma série de palestrantes compartilhou as mais recentes pesquisas sobre melhorias nas taxas de sobrevivência após paradas cardíacas. Mas à noite, o entretenimento ficou por conta do grupo Mulberry Hawk.

Eles apresentaram uma performance que, conforme a sinopse, “narra a história de Ewa Lazlo, que se tornou a inspiração para o rosto da Resusci Anne, o primeiro manequim utilizado no treinamento de RCP, conhecido como ‘a garota mais beijada do mundo'”.

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O Inconnue de la Seine no International Life Cast Museum, em Boston

Assim, se percebe que a história de Ewa estava ganhando vida própria. Vários sites e blogs estão citando como fato que ela é a Inconnue. John Goto, o criador dessa narrativa, admite sentir-se um pouco desconfortável com sua criação. “Eu presumi que as pessoas teriam uma visão pós-moderna e tratariam a história como ficção“, ele compartilhou comigo. “Eu realmente não esperava que levassem tão a sério.

No entanto, mesmo que Ewa seja um lembrete de não acreditarmos em tudo o que lemos na internet, é improvável que a história vá muito além. O que nos fascina sobre a Inconnue é a incerteza, o mistério. O que confere valor à máscara é o enigma que a envolve. No momento em que atribuímos um nome, uma história de vida, aquele mistério está morto.

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Fontes: 1 2

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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