É surpreendente descobrir que na Índia, as pessoas transgênero são reverenciadas como sagradas. Conhecidas como “Hijras”, são consideradas como seres tocados pelos deuses, portadores de boa sorte e bênçãos. Por essa razão, é comum convidá-las para celebrar casamentos, nascimentos e qualquer evento em busca de boa fortuna ou graça.
É um fenômeno intrigante que merece nossa atenção. Num país marcado por uma diversidade cultural rica e, ao mesmo tempo, por desafios sociais como a pobreza, destaca-se a reverência dedicada à figura das pessoas transgênero. Contudo, vale ressaltar que a condição de ser considerado uma divindade nem sempre traz benefícios imediatos para aqueles que vivenciam essa experiência em sua realidade.
Para compreender o significado da transexualidade na Índia, dois exemplos ilustrativos podem nos guiar: Kanta e Sudha. Com rostos angulares e corpos atléticos, essas duas Hijras transexuais se enfeitam com colares, brincos e trajes vibrantes. São presenças habituais em casamentos, onde noivos e convidados buscam suas bênçãos e boa sorte.
Kanta e Sudha personificam as Hijras sagradas, ganhando a vida de maneira peculiar: participando de casamentos, celebrações de nascimentos, inaugurações de casas e outros eventos, em troca de gratificações. Outros, por exemplo, percorrem os vagões de trem, recebendo algumas moedas em troca de permitirem ser tocados, acreditando que dessa maneira estão compartilhando sua suposta sorte natural.
Entretanto, um local verdadeiramente especial para as Hijras é o magnífico templo Becharaji, localizado na cidade de Mehsana, distrito de Gujarat. Diariamente, dirigem-se a este santuário para prestar devoção à sua deusa: Bahuchara Mata. Uma pequena estátua dourada retrata uma mulher elegante empunhando uma espada, objeto de adoração diária para todos os transexuais hindus. Acredita-se que ela os envolva com sua proteção e a sutil magia da boa fortuna.
O templo original foi erguido por volta de 1783 d.C., sendo uma obra rica em detalhes esculpidos, apresentando pilares, torans e paredes construídos de acordo com os princípios do Vastu Shastra. Há uma crença que atribui um papel significativo a Manaji Rao Gaekwad na construção do templo, especulando-se que ele tenha sido o responsável por sua edificação em 1839 d.C..
No templo, a representação de Bahuchar Mata é retratada montando um galo. Esse animal foi o símbolo da dinastia Solanki, que governou Gujarat em determinado período. Consequentemente, alguns associam os Solankis à Mataji e ao seu templo de adoração. Essa conexão histórica entre o galo e a dinastia Solanki fortalece os laços simbólicos e culturais entre a divindade e a região de Gujarat.
Uma intrigante lenda indiana, originária da tradição do “Mahabharata”, relata a história de um homem que, secretamente, adentrou este templo e se vestiu como mulher por dentro. Após sair de Becharaji, viveu um ano inteiro assumindo a identidade de Brihannala, ensinando a dançar e cantar a todos os que frequentavam o templo. Diz-se também que, antes de sua transformação, ele escondeu seu arco e flecha de guerreiro em uma árvore, a mesma que ainda se encontra no pátio do templo. Esta narrativa encantadora cativa os turistas que visitam este templo único na Índia.
A vida dos transexuais na Índia é profundamente entrelaçada com a devoção à deusa Bahuchara Mata e ao templo Becharaji. Kanta e Sudha compartilham: “Nós dedicamos nossas vidas à fé e não conseguimos imaginar vivendo em um escritório, no campo ou como donas de casa em uma família.” Essa dedicação à fé é tão intrínseca que não concebem outra forma de existência.
Entretanto, por trás dessa aparente posição privilegiada existe uma realidade complexa e desafiadora. Quando uma família identifica um de seus membros como Hijra, muitas vezes são separados da família e da sociedade, associados ao templo Becharaji. Embora seja acreditado que sua condição lhes confira virtude e felicidade natural, a verdade é que são privados de educação, integração comunitária e oportunidades de trabalho.
Dependem da caridade daqueles que os querem presentes em cerimônias como casamentos e batizados, recebendo moedas que mal garantem a sobrevivência. Recentemente, o Supremo Tribunal da Índia tomou medidas para proteger essa comunidade, buscando reintegrá-los à educação e outras oportunidades sociais.
A transexualidade, portanto, é uma faca de dois gumes na Índia. São considerados seres sagrados, mas ao mesmo tempo são segregados da sociedade, como figuras frágeis presas em uma redoma. Uma contradição vivida em um templo, envolta em complexidade e desafios sociais.
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