Histórias

San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias

San Borondón, mítica ilha de São Brandão, emerge no folclore canário, envolta em neblina, berço de lendas, perpetuando-se como tesouro cultural, além da existência física

San Borondón… Oh, mítico encanto envolto em neblina, / terra intocada e efêmera, divina e deslumbrante! / Eu te admiro, ilha peculiar que emerge entre as espumas / e, entre elas, desapareces instantaneamente.

Assim expressou o poeta e jornalista de Tenerife, Luis Álvarez Cruz, ao referir-se a uma das lendas mais queridas da mitologia canária. Diversas ilhas fabulosas foram associadas às Ilhas Canárias ao longo do tempo, desde os Abençoados até as próprias Ilhas Afortunadas, incluindo a mítica Atlântida.

No entanto, nenhuma se destaca de maneira tão tangível quanto a ilha fantasma de San Borondón (em português: São Brandão), que até mesmo figurou no Tratado de Alcazobas (1479), dividindo o Atlântico entre Portugal e Espanha, e persistiu na imaginação popular, sendo fotografada em agosto de 1958 por Manuel Rodriguez Quintero. Isso foi destacado em um intrigante artigo do jornal ABC, acompanhado por uma foto que esboçava a silhueta da ilha lendária de San Borondón no horizonte.

Lenda da Ilha de San Borondón

A lenda da misteriosa Ilha Canária remonta ao século VI, através da narrativa do monge irlandês São Brandão, o Navegador, dedicado à evangelização em terras desconhecidas do Oceano Atlântico, como as Ilhas Faroé e a Gronelândia. Documentos medievais, como a Navigatio Sancti Brendani, contam que, em uma de suas viagens, São Brandão deparou-se com uma ilha que surgia e desaparecia, não devido à neblina marítima, mas guiada, supostamente, por um gigantesco peixe. Este encontro levou o abade irlandês a uma ilha paradisíaca, a nona ilha das Canárias.

San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias
São Brandão, herói e santo irlandês do século VI, representa a celebração da missa nas costas da baleia gigante Jasconius. Diz a lenda que seu barco foi carregado no dorso de uma baleia. Gravura colorida de “Nova Tipus Transacto Navigatio N

Embora essas histórias possam soar como pura literatura fantástica, na era dourada das descobertas marítimas, mesmo as narrativas mais incríveis serviam como estímulo para intrépidos navegadores levantarem âncora em busca do paraíso. Afinal, não foi Colombo quem se deparou com um vasto continente durante sua jornada em direção às Índias? O mar sempre foi o terreno dos sonhadores.

E assim se desencadeou uma série de expedições em busca da mítica nona ilha Canária a oeste da ilha El Hierro (Ferro). Uma das primeiras investidas ocorreu no final do século XV, protagonizada por Fernando de Viseu, sobrinho de Henrique, o Navegador de Portugal. Na era de Filipe II, o engenheiro Leonardo Torriani afirmou ter explorado essa ilha pontilhada de colinas, enquanto Alonso de Espinosa, governador de El Hierro, não teve a mesma sorte, apesar de sua proximidade geográfica.

San Borondón na reconstrução do mapa de Toscanelli
San Borondón na reconstrução do mapa de Toscanelli. Fonte: Wikipédia

No mesmo período, um navegador português, Pedro Vello, contribuiu para a expansão da lenda de San Borondón com uma história fascinante. Durante uma tempestade, Vello chegou a uma ilha misteriosa a oeste de La Palma e El Hierro, desviando-se de seu curso original. Conta-se que, uma vez em terra, o vento se intensificou de tal forma que ele teve que retornar precipitadamente ao navio, deixando dois marinheiros “esquecidos” no solo.

Essas narrativas, mais ou menos fantásticas, perpetuaram o mito de San Borondón. Em uma época em que até os confins mais remotos do oceano estavam sendo explorados, a persistência do mito de uma ilha que surgia e desaparecia indica, no mínimo, um grande mal-entendido geográfico em torno de San Borondón. Esse mal-entendido foi oficialmente abordado quando Hernán Pérez de Grado, o primeiro regente da Corte Real das Ilhas Canárias, lançou luz sobre o assunto, ordenando uma investigação oficial após inúmeros avistamentos nos meses anteriores.

A lenda de San Borondón continuou a ganhar contornos, alcançando seu auge quando Gaspar Domínguez organizou a última expedição oficial em 1721 para desvendar o mistério da nona ilha das Canárias. Infelizmente, a busca foi infrutífera, e San Borondón permaneceu escondido nas brumas do oceano, encerrando as expedições dedicadas a desvendar seu enigma.

San Borondón existe: cartografia de uma ilha fantasma

San Borondón não é apenas uma criação da imaginação, mas sim uma presença nos mapas, tanto medievais quanto modernos, que ajudaram a solidificar sua existência lendária. Diversos cartógrafos, ao longo dos séculos, foram influenciados por contos e histórias sobre a ilha a oeste do arquipélago das Canárias, incluindo-a em seus mapas.

O planisfério de Hereford, datado de 1290, marca a primeira aparição de San Borondón, referindo-se às “seis Ilhas Afortunadas como as Ilhas de San Borondón” em uma inscrição em latim. No século seguinte, o planisfério de Ebstorf expressa cautela ao afirmar que “São Brandão a descobriu, mas ninguém o encontrou desde então“.

Ilha de San Borondón em um mapa antigo
Ilha de San Borondón em um mapa antigo. Fonte: Tevatelleva.com

Ao longo do século XV, Pizzigano desenha a ilha a uma curta distância de El Hierro, com estimativas de sua localização variando de 550 quilômetros a oeste-noroeste de El Hierro, embora alguns acreditassem que estivesse mais próxima. Sua suposta extensão era de aproximadamente 500 quilômetros de comprimento (norte a sul) e 150 quilômetros de largura (leste a oeste), com duas montanhas imponentes em cada extremidade.

San Borondón permaneceu presente em numerosos mapas desse período, incluindo o mapa mundial de Fra Mauro, considerado um dos melhores registros cartográficos medievais. O último mapa a respeitar a lenda da ilha fantasma das Canárias foi a Carta Geográfica de Gautier, datada de 1755, pouco depois da expedição final de Gaspar Domínguez.

Mapa do cartógrafo francês Guillaume Delisle de 1733
Ilha de San Borondón a oeste das Ilhas Canárias no mapa do cartógrafo francês Guillaume Delisle de 1733. Fonte: Wikipedia

Embora não haja mais expedições oficiais à procura dessa ilha oculta nas brumas atlânticas após 250 anos, avistamentos esporádicos e projetos artísticos continuam a nutrir uma das mais belas lendas da mitologia canária. San Borondón, enraizada nos mapas e na imaginação, perdura como um mistério encantador, escondido no nevoeiro atlântico.

Independentemente de sua existência física, os habitantes das Canárias sempre nutriram um carinho especial pela lenda de San Borondón. A importância atribuída à sua presença no folclore canário transcende a questão de sua existência concreta, pois a sobrevivência da lenda confere a ela uma realidade única e significativa.

San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias
Detalhes do mapa do cartógrafo francês Guillaume Delisle

Para os canários, a lenda de San Borondón não é apenas uma geografia misteriosa, mas sim um tesouro cultural que enriquece suas tradições. A ilha fantasma, envolta em mistério, torna-se mais do que uma mera localização geográfica; ela representa a conexão entre o real e o imaginário, entre a terra e o mar. A persistência da lenda ao longo do tempo contribui para uma sensação de pertencimento e identidade cultural entre os habitantes das Canárias.

Assim, para os canários, o carinho pela lenda vai além da comprovação física da existência de San Borondón. A narrativa torna-se um elo emocional e simbólico, enraizado na tradição oral, nas artes e na imaginação coletiva. San Borondón é mais do que uma ilha perdida; é um legado cultural que continua a ser celebrado e apreciado, independentemente de sua realidade concreta.

San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias
O contorno da ilha de San Borondón é mostrado aqui num mapa de 1772 escrito pelo espanhol José Viera y Clavijo. | BIBLIOTECA DO MUSEU DAS CANÁRIAS
San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias
Uma impressão artística de uma lagoa de San Borondón da exposição La Isla Descubierta (“A Ilha Descoberta”) de 2005. | TAREK ODE E DAVID OLIVERA
San Borondón: A história da ilha perdida das Ilhas Canárias
Em 10 de agosto de 1958, Manuel Rodríguez Quintero conseguiu tirar o que parecia ser a primeira fotografia da ilha fantasma, que foi publicada pelo jornal ACB. Foi tirada no sul da ilha de Tazacorte (La Palma)

Fontes: 1 2 3

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Magnus Mundi

Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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