Histórias

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

A história de Sarah Baartman é um relato de abuso e desumanização que se tornou um símbolo impactante da exploração colonial, do racismo e da mercantilização dos negros. Conhecida como a “Vênus Hotentote”, Sarah era uma mulher Khoi da África do Sul, brutalmente arrancada de sua terra natal e exibida como uma atração bizarra em “shows de horrores” na Europa no início do século 19, devido às suas nádegas incomumente grandes.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense
Sarah tinha uma condição natural chamada ‘esteatopigia’ | Crédito da imagem: Museu Britânico/Wikimedia

Sarah nasceu em 1789 em uma família Khoekhoe no Vale Gamtoos, no Cabo Oriental da África do Sul. Acredita-se que seu nome original fosse Ssehura, e foi enquanto trabalhava em uma fazenda colonial que Sarah ganhou o apelido holandês Saartjie, que significa “pequena Sarah”. Além disso, seu sobrenome “Baartman” também lhe foi dado pelos seus mestres e tem um significado ambivalente, que vai desde “homem barbudo” em holandês até conotações de incivilizado, rude, bárbaro e selvagem.

Aos 16 anos, Sarah foi vendida como escrava para um comerciante chamado Pieter Willem Cezar, que a levou para a Cidade do Cabo. Lá, ela passou a trabalhar como empregada doméstica para o irmão de Cesars, Hendrik Cesars. Nesse período, Sarah deu à luz dois filhos, embora ambos tenham falecido ainda na infância.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense
Charges políticas foram feitas com figura de Baartman | Crédito da imagem: Museu Britânico

Por causa de seu corpo naturalmente curvilíneo, Hendrik Cesars começou a exibir Sarah no hospital da cidade em troca de dinheiro. Um dos cirurgiões do local, Alexander Dunlop, que também fornecia espécimes de animais a artistas britânicos como parte de seus negócios, ficou intrigado. Sarah sofria de uma condição chamada esteatopigia, que resulta em um acúmulo notável de gordura nas nádegas e coxas.

Além disso, seus lábios internos eram naturalmente alongados, o que fazia com que a pele da genitália se projetasse abaixo da vulva. Embora essa aparência fosse típica das mulheres Khosianas, para os europeus era algo raro e até mesmo erótico. Dunlop viu nisso uma oportunidade de exploração e passou a pressionar Sarah a viajar para a Europa com o intuito de se tornar uma atração e ganhar dinheiro.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

Inicialmente, Sarah recusou a proposta, mas acabou cedendo à pressão de Dunlop e concordou em ir. Assim, em 1810, Sarah, Cesars e Dunlop desembarcaram em Londres e estabeleceram residência na Duke Street, St. James, uma das áreas mais nobres da cidade. Sarah foi exibida em um edifício em Piccadilly, atraindo milhares de londrinos fascinados e admiradores de suas proeminentes nádegas. Por dois xelins, as pessoas podiam contemplar seu corpo. Aqueles dispostos a pagar um pouco mais tinham a permissão de tocá-la.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

Ela foi objetificada no sentido mais literal, exposta diante de multidões boquiabertas seis dias por semana, realizando danças sugestivas ‘nativas’ e tocando instrumentos africanos. Seu traje era um vestido de seda da cor da pele, habilmente cortado para se assemelhar a uma segunda pele, adornado com inúmeras joias nas costuras, uma artimanha para ocultar o fato de que ela não estava, tecnicamente, nua”, escreve Marisa Meltzer num jornal local.

A exposição de Sarah em Londres após a promulgação da Lei do Comércio de Escravos de 1807 provocou protestos entre os abolicionistas. Os ativistas ficaram chocados com o tratamento dispensado a Sarah e levaram seus empregadores a julgamento. No entanto, a própria Sarah testemunhou a favor deles, declarando em um comunicado que não havia sido abusada sexualmente, e que havia vindo a Londres por vontade própria, sem desejo de retornar à sua família.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

Depois de passar quatro anos na Inglaterra, Sarah foi levada para a França por um treinador de animais chamado Jean Riaux e exposta no Palais Royal, em Paris. Durante esse período, Sarah foi praticamente escravizada, com Riaux tratando-a como qualquer outro animal, dando-lhe ordens para se sentar ou ficar de pé, de forma semelhante a um treinador de circo com seus animais. Às vezes, ela era exibida em uma gaiola.

Clifton Crais e Pamela Scully escrevem em “Sara Baartman and the Hottentot Venus“: “Quando ela chegou a Paris, sua existência era verdadeiramente miserável e extraordinariamente desumana. Sara foi literalmente tratada como um animal. Há algumas evidências que sugerem que, em certo momento, uma coleira foi colocada em volta de seu pescoço.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

Sarah ficou sob a atenção do naturalista francês Georges Cuvier, que a estudou como um espécime para promover o racismo científico. Sarah concordou em ser estudada e retratada por um grupo de cientistas e artistas, mas recusou-se a aparecer completamente nua diante deles. Cuvier queria examinar seus órgãos genitais para testar sua teoria de que quanto mais “primitivo” o mamífero, mais pronunciados seriam os órgãos sexuais e o impulso sexual. Mesmo com a recusa inicial de Sarah, Cuvier logo conseguiria o que queria.

Em 1815, a cidade passou por rápidas transformações em meio a uma série de acontecimentos. O fracasso das colheitas levou a um aumento nos preços dos alimentos, enquanto o breve regresso de Napoleão ao poder foi seguido pela sua derrota na Batalha de Waterloo, em junho. À medida que a nação mergulhava num estado de depressão económica, as pessoas tinham menos rendimento disponível para gastar em entretenimento, como a exibição da Vênus Hotentote. O promotor de Sarah foi obrigado a exibi-la em locais menos proeminentes, incluindo um bordel, onde ela também pode ter sido prostituída.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense

No mesmo ano, Sarah morreu, possivelmente devido a pneumonia ou sífilis agravada pelo alcoolismo, com 26 anos de idade. Georges Cuvier dissecou seu corpo e concluiu que muitas das características de Sarah eram semelhantes às dos macacos, de acordo com suas teorias sobre a evolução racial. Ele achava que suas orelhas pequenas eram semelhantes às de um orangotango e também comparou sua vivacidade, quando viva, à rapidez de um macaco.

Antes de Cuvier cortá-la, ele fez um molde de gesso de seu corpo, preservou seu esqueleto e conservou seu cérebro e órgãos genitais, colocando-os em potes. Eles estiveram em exibição no Museu do Homem de Paris até a década de 1970, quando suscitaram reclamações por serem uma representação degradante das mulheres.

Em 2002, sob pressão do governo do presidente Nelson Mandela, o governo francês concordou em devolver seus restos mortais, e ela foi enterrada novamente em Hankey, na província do Cabo Oriental. Antropólogos modernos acreditam que a forma feminina exagerada de Sarah poderia ter sido mais difundida em humanos no passado, com base em esculturas de formas femininas que datam da era Paleolítica, conhecidas coletivamente como estatuetas de Vênus.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense
Autoridades sul-africanas e francesas posam ao lado de um molde de gesso de Baartman em Paris, antes de seus restos mortais retornarem à África do Sul. Crédito da Foto

Embora a vida de Sarah tenha terminado há muito tempo, o fascínio do público pelas formas corporais não diminuiu. Em novembro de 2014, a Paper Magazine lançou uma capa com a estrela de reality show Kim Kardashian equilibrando uma taça de champanhe em seu traseiro saliente. A publicação enfrentou críticas consideráveis ​​por promover “a exploração e o fetichismo do corpo feminino negro”.

As críticas feministas argumentaram que a objetificação do corpo de Sarah e a representação etnográfica de sua imagem refletiam a representação atual de Kardashian na mídia. No entanto, algumas mulheres negras consideraram a história de Sarah fortalecedora, uma vez que desafia os ideais de beleza da corrente dominante branca, dado que os corpos curvilíneos são cada vez mais celebrados na cultura popular e nos meios de comunicação de massa.

Sarah Baartman: a africana que virou atração circense
2002: O novo enterro dos restos mortais de Baartman ocorre na África do Sul | Crédito da foto

Fontes: 1 2

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