Histórias

Sex Raft: O primeiro “Big Brother” da História

O Experimento Acali, liderado por Santiago Genovés, foi uma análise do comportamento humano em confinamento marítimo prolongado, conhecido como "barco do sexo".

Com o lançamento do reality show “Largados em Alto Mar” no Brasil pela Discovery, uma aventura histórica de 1972 ressurge, ecoando como precursora do que viria a ser o primeiro “Big Brother” da história. Onze indivíduos confinados em uma pequena balsa por três meses, cruzando o vasto Oceano Atlântico, com o propósito de estudar o comportamento humano nessas circunstâncias. Esse experimento, apelidado pela imprensa de ‘Sex Raft‘ (Jangada do Sexo), ganhou notoriedade por sua abordagem ousada e polêmica.

Denominado por Genovés como ‘Projeto de Paz‘, foi um dos experimentos sociais mais fascinantes já realizados, conduzido pelo antropólogo mexicano Santiago Genovés em 1973. Contando com o apoio financeiro de uma emissora de televisão mexicana, o projeto envolveu um acordo onde a emissora receberia relatórios semanais detalhados sobre todos os eventos ocorridos a bordo.

Cena do documentário “The Raft”.
Cena do documentário “The Raft”. (Fasad / Imagens Metrográficas)

Santiago Genovés, renomado antropólogo físico e doutor em Antropologia pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e depois, como pesquisador emérito da UNAM após a aposentadoria. Santiago faleceu em setembro de 2013, deixando um legado científico notável, especialmente na sociologia do comportamento humano. Seu interesse particular no evento residia na análise do comportamento humano sob circunstâncias de isolamento social e confinamento espacial.

A concepção desse experimento foi motivada por uma experiência pessoal significativa: o sequestro de um avião em que Genovés esteve envolvido em 1972. Esse evento traumático despertou nele a curiosidade de estudar mais a fundo como as pessoas se comportariam em situações semelhantes.

Além disso, Genovés já havia desempenhado um papel relevante como membro da tripulação na expedição Ra e Ra II de Thor Heyerdahl, visando validar teorias sobre as antigas travessias transatlânticas. Heyerdahl buscava demonstrar a possibilidade de tais jornadas antes de Cristóvão Colombo. Essas experiências combinadas moldaram sua abordagem única para explorar as nuances do comportamento humano em ambientes desafiadores.

Para realizar o experimento, Genovés mandou construir um barco de 12 x 7 metros com uma pequena vela, chamado Acali, que vem da língua Nahuatl e significa ‘a casa sobre a água’. A cabine media 4 x 3,7 metros, com espaço apenas para o corpo de cada um, deitado. Em 1973, onze pessoas partiram de Las Palmas, na Espanha, em uma jornada transatlântica de 101 dias pelo Oceano Atlântico, chegando a Cozumel, no México, como parte de um experimento sobre violência, agressão e atração sexual.

A jangada Acali cruzou o Atlântico como parte de uma controversa experiência científica sobre o comportamento humano.

A tripulação era composta por indivíduos de diferentes raças e religiões:

  • Santiago Genovés Tarazaga, 49 anos, antropólogo mexicano, idealizador do experimento;
  • José María Montero Pérez, 34 anos, antropólogo uruguaio, ex-aluno de Genovés;
  • Servane Zanotti, 32 anos, mergulhadora francesa, responsável por conduzir um estudo sobre poluição;
  • Charles Anthony, 37 anos, operador de rádio cipriota grego;
  • Rachida Mazani, 23 anos, argelina, responsável por conduzir um estudo sobre poluição;
  • Mary Gidley, 36 anos, americana, com algum conhecimento de navegação;
  • Fé Evangelina Seymour, 23 anos, operadora de rádio americana;
  • Maria Björnstam, 30 anos, capitã sueca da expedição;
  • Edna Jonas, 32 anos, médica residente na Tchecoslováquia em Israel;
  • Bernardo Bongo, 29 anos, padre angolano;
  • Eisuke Yamaki, 29 anos, cameraman japonês.

Genovés esperava que essa mistura diversificada de pessoas servisse como um microcosmo do mundo.

Durante a épica travessia de três meses pelo Oceano Atlântico, Genovés engenhosamente implementou uma série de estratégias para instigar e analisar conflitos entre os participantes. Uma tática notável foi a redução das oportunidades de privacidade e a proibição de qualquer material de leitura a bordo.

O propósito era examinar de que maneira a agressão poderia ser desencadeada em um espaço confinado, assemelhando-se aos experimentos observados em ambientes laboratoriais com animais. Além disso, Genovés atribuiu funções de liderança exclusivamente às mulheres, com o intuito de estudar de perto como os homens responderiam à autoridade feminina. Essas medidas cuidadosamente planejadas proporcionaram um campo de estudo singular para explorar as dinâmicas sociais e psicológicas em condições extremas de convivência.

Apesar das intenções de Genovés, o experimento não ocorreu exatamente como planejado. A viagem foi marcada por tensões, conflitos e até mesmo esquemas assassinos. No entanto, o ‘Projeto de Paz’ continua sendo um estudo fascinante sobre o comportamento humano sob condições extremas. Embora o experimento tenha sido controverso e criticado por muitos, ele ofereceu uma visão única sobre a natureza humana e a dinâmica do grupo. A experiência de Genovés na “Jangada do Sexo” continua a ser um tópico de discussão e análise até hoje.

A sueca Maria Björnstam a capitã da jangada
A sueca Maria Björnstam (no centro da imagem) a capitã da jangada

Condições de vida a bordo

As condições de vida a bordo do barco eram notavelmente restritas, caracterizadas por um espaço exíguo e ausência de privacidade. Genovés impôs regras rigorosas, como a proibição de leitura e a restrição do tempo de sono, com a convicção de que tais condições poderiam potencializar a agressão e a violência entre os membros da tripulação.

O projeto foi alvo de críticas devido a relatos de atividades orgiásticas a bordo. Entretanto, Genovés rebateu as especulações da imprensa, explicando que as circunstâncias a bordo dificultavam significativamente qualquer atividade sexual. Geralmente, esses momentos ocorriam entre duas pessoas que estavam de guarda enquanto os outros tripulantes dormiam. O retorno das mulheres à terra firme foi marcado pelo choque diante da cobertura sensacionalista da mídia.

Contudo, torna-se evidente que o evento não é uma narrativa sobre como o sexo e a violência inevitavelmente emergem quando um grupo de indivíduos é deixado sozinho, mas sim uma reflexão sobre o egoísmo humano. As interações sexuais entre os participantes revelam-se inócuas, os episódios de agressão são isolados e de pequena magnitude, e a microssociedade a bordo geralmente opera de forma harmoniosa. Isso desaponta Genovés, que, na tentativa de provocar conflitos, revela as respostas que os participantes pensavam ter fornecido em privado a algumas perguntas de natureza pessoal, como “Com quem você preferiria ter relações sexuais?” e “Quem você escolheria para liderar a jangada?”

Resultados do experimento

Com Genovés provocando conflitos, como jogar baldes de água nas pessoas e empregar métodos que lembravam a Gestapo, os participantes ficaram furiosos ao perceber que seu guia havia se tornado um ditador. O ponto de virada ocorreu quando o antropólogo agrediu a capitã da jangada, a mesma líder feminina que ele designara para observar como os homens reagiriam a bordo. Com uma naturalidade desconcertante, os participantes recordam como, numa noite, conspiraram para assassinar o homem que os uniu.

Surgiram várias ideias, desde fazê-lo cair ao mar até o uso de uma seringa, com cada tripulante segurando a agulha para assegurar uma responsabilidade coletiva e, consequentemente, manter o silêncio. Contrariamente às expectativas de Genovés, o experimento não resultou em violência extrema ou agressão. O grupo opta por resolver o problema criado por Genovés por meio da diplomacia, em vez da violência, e, como resultado, torna-se ainda mais coeso e unido.

Santiago Genovés brincando com um membro de sua balsa
Santiago Genovés brincando com um membro de sua balsa

Críticas e controvérsias

O evento suscitou críticas consideráveis devido às suas metodologias e questões éticas controversas. Muitos expressaram preocupação de que Genovés estivesse manipulando a vida das pessoas em prol da ciência, levantando questões sobre a ética envolvida na condução do experimento. Além disso, algumas vozes opositivas consideraram o experimento como uma forma de tortura psicológica, questionando os limites éticos da experimentação humana em ambientes extremos.

Apesar dessas críticas acaloradas, o experimento permanece um tópico fascinante e frequentemente debatido até os dias atuais. O impacto duradouro das ações de Genovés levanta questões importantes sobre os limites éticos da pesquisa científica, especialmente quando se trata de estudar o comportamento humano em condições extremas. O debate em torno do experimento continua a gerar reflexões profundas sobre a responsabilidade dos pesquisadores, os direitos dos participantes e os padrões éticos que devem guiar a investigação científica.

Livro de Santiago Genovés sobre a aventura

Santiago Genovés escreveu um livro sobre a expedição Acali, intitulado Acali: Una aventura transoceánica para comprender al hombre. O livro foi publicado em 1975 em espanhol e posteriormente traduzido para outros idiomas, incluindo o inglês (“The Acali Experiment. Five Men and Six Women on a Raft Across the Atlantic for 101 Days“).

O Filme “The Raft”:

Em janeiro de 2019, o diretor sueco Marcus Lindeen lançou o documentário “The Raft” no Festival de Cinema de Londres, que revisita a história da expedição Acali através de entrevistas com os tripulantes, imagens de arquivo e reencenações. O filme explora os desafios, as tensões e as relações interpessoais que marcaram a experiência, oferecendo uma reflexão sobre a natureza humana em situações extremas.

Legado do experimento

Apesar das controvérsias, o Projeto de Paz deixou um legado duradouro. Ele forneceu uma visão única sobre a natureza humana e a dinâmica do grupo. Além disso, o experimento levantou questões importantes sobre a ética na pesquisa científica. Até hoje, a expedição continua a ser estudado e discutido em círculos acadêmicos e além.

Os onze membros da jangada Acali
A tripulação mista, multiétnica e de 11 pessoas, capitaneada por Maria Björnstam (centro)
Jornais da época chamavam o experimento de 'Jangada da orgias'
Jornais sensacionalistas da época chamavam o experimento de ‘Jangada da orgias’
Somente seis tripulantes continuam vivos e que foram entrevistados para o filme de sueco Marcus Lindeen
Somente seis tripulantes continuam vivos e que foram entrevistados para o filme de Marcus Lindeen

Na imagem acima os sobreviventes do experimento (da esquerda para a direita: Mary Gidley, Edna Reves, Fé Seymour, Eisuke Yamaki, Maria Björnstam e Servane Zanotti) no documentário de Marcus Lindeen, The Raft. Fotografia: Måns Månsson

Fontes: 1 2

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