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A Pedra de Singapura e a lenda de Badang

Na foz do rio Singapura, situado em um promontório conhecido como Rocky Point e Artillery Point, existia uma imponente pedra com três metros de largura e altura. Foi avistada pela primeira vez em 1819 por trabalhadores que estavam envolvidos na limpeza das florestas, a serviço do oficial britânico Sir Stamford Raffles. Ele havia assegurado o controle da ilha de Singapura como parte do esforço para fortalecer a presença britânica na região.

Uma das faces da pedra apresentava diversas linhas inscritas em uma escrita enigmática que nem a população local, nem antiquários estrangeiros, ou outros entusiastas conseguiram decifrar. Isso gerou um grande interesse em torno da pedra e da inscrição misteriosa que ela ostentava. Infelizmente, a pedra foi alvo de uma explosão em 1848, realizada pelos engenheiros da Companhia das Índias Orientais, como parte das obras para alargar a foz do rio. Apenas alguns fragmentos da pedra puderam ser preservados.

A lenda

De acordo com o folclore local, a imensa pedra foi arremessada na foz do rio Singapura pelo lendário homem forte Badang, que viveu durante o reinado do Raja Sri Rana Wikrama do Reino de Singapura no século XIV. Badang nasceu como um menino comum na parte norte do Sultanato de Johor, na atual Malásia. Quando jovem, ele foi submetido ao trabalho escravo sob um rico fazendeiro, laborando nos campos e desbravando florestas.

À noite, pescava em um pequeno riacho com armadilhas. Em uma dessas noites, ao retornar para coletar os peixes, deparou-se com um demônio que devorava sua captura. Badang ficou tomado pela raiva e, com determinação, agarrou o demônio, prendendo seu cabelo em uma pedra. O demônio, em agonia, implorou por misericórdia e prometeu conceder qualquer desejo a Badang em troca da sua liberdade. O desejo de Badang era obter força para que jamais se sentisse exausto pelo trabalho. O demônio concordou, porém com uma condição: Badang deveria ingerir seu próprio vômito. A ideia de tal ação deixou Badang enojado, mas sua ânsia pelo poder superou a repugnância. Assim, ele aceitou a condição e libertou o demônio.

A Pedra de Singapura e a lenda de Badang
Um mapa de Singapura de 1825 mostrando a localização de Rocky Point, na foz do rio Singapura, onde ficava a laje de arenito. 
Crédito da imagem: Arquivos Nacionais de Singapura

De volta à fazenda, Badang aproveitou ao máximo sua recém-adquirida força e desmatou a floresta em tempo recorde. Os outros escravos e seu senhor ficaram completamente maravilhados. Logo, as notícias sobre o extraordinário poder de Badang se espalharam pelo reino e além, alcançando terras vizinhas.

Não demorou muito para que o rei de Singapura, Sri Rama Wira Kerma, ouvisse falar de Badang e o convocasse para comparecer à sua corte. Para testar a força de Badang, o rei ordenou-lhe que empurrasse um barco recém-construído em direção ao mar. Com um gesto quase que casual, Badang lançou o barco com facilidade. O rei ficou tão impressionado com a demonstração de poder que prontamente nomeou Badang como campeão de sua corte.

Quando o rei de Kalinga, na Índia, ficou sabendo das proezas de Badang, decidiu chamá-lo e organizou uma série de competições envolvendo os homens mais fortes de seu reino. Badang enfrentou o favorito do rei em várias provas de força e luta livre, porém o resultado sempre terminava em empate. Por fim, surgiu a sugestão de que o vencedor seria aquele capaz de erguer a enorme pedra em frente ao palácio. Badang não apenas a levantou acima de sua cabeça, como a arremessou, fazendo com que ela caísse na foz do rio Singapura.

Destruição da pedra

Em 1843, a pedra foi alvo de uma explosão com o intuito de limpar e alargar a passagem na foz do rio Singapura, proporcionando espaço para a construção do Forte Fullerton e seus alojamentos. O tenente-coronel James Low, um oficial militar da Companhia das Índias Orientais, fez esforços para salvar a pedra da destruição, mas seus apelos foram ignorados.

Após a explosão, ele conseguiu reunir diversos fragmentos contendo as partes mais legíveis da inscrição e os enviou ao museu da Royal Asiatic Society em Calcutá, a fim de preservá-los em segurança. Em 1918, o Museu Raffles, atualmente conhecido como Museu Nacional de Singapura, solicitou a devolução de um desses fragmentos, o qual lhe foi concedido. O destino dos demais fragmentos permanece envolto em mistério e desconhecimento.

A Pedra de Singapura e a lenda de Badang
Um fragmento da pedra original, hoje conhecida como Pedra de Singapura.

A inscrição

Ao longo do último século e meio, um grande mistério envolveu o paradeiro dos fragmentos desaparecidos e a intrigante inscrição que eles continham. Foram realizados inúmeros esforços para decifrar a pedra, resultando em uma variedade de interpretações e sugestões de línguas.

Sir Stamford Raffles foi um dos primeiros a tentar desvendar as inscrições na laje original de arenito, antes que ela fosse destruída. Ele tinha a impressão de que a escrita era de origem “hindu”, considerando os hindus como a mais antiga das raças de imigrantes no Oriente, que se estabeleceram em locais como Java, Bali e Sião, cujos habitantes eram tidos como seus descendentes.

Outro indivíduo, o Dr. William Bland, também demonstrou interesse na laje de pedra antes de sua explosão. Utilizando massa para fazer uma cópia das inscrições cinzeladas, e contando com a assistência de um escritor nativo, ele chegou à dedução de que a escrita remontava ao antigo Ceilão, ou Pali. James Prinsep, um erudito anglo-indiano, concordou ao afirmar que reconhecia vários alfabetos, embora não fosse capaz de formar nenhuma frase ou palavra coesa a partir deles.

De acordo com o capitão Peter James Begbie, da Artilharia de Madras da Companhia das Índias Orientais, a inscrição estava em um dialeto obsoleto do Tamil e narrava as proezas de Badang e a história da própria pedra.

A Pedra de Singapura e a lenda de Badang

Outra interpretação sugere que a escrita na pedra é Kawi, uma língua antiga das ilhas de Java, Bali e Lombok, baseada no javanês antigo. A pesquisa contemporânea tende a concordar que a inscrição provavelmente é em Kawi, embora seja impossível decifrar o seu conteúdo. Em dezembro de 2019, o pesquisador australiano Dr. Iain Sinclair afirmou em um artigo que conseguiu identificar parte da palavra “parakesarivarman”, um título usado por vários reis da dinastia Tamil Chola na Índia.

Essa descoberta sugere uma ligação Tamil com o Estreito de Singapura que remonta a cerca de um milênio, potencialmente reformulando a cronologia histórica da ilha. Sinclair propõe que a origem da pedra possa datar do início do século XI, o que, por sua vez, alteraria as origens de Singapura para mais de 300 anos antes da data de fundação atualmente reconhecida, em 1299.

A Pedra de Singapura

Um dos fragmentos da laje de arenito original, preservado pelo Tenente-Coronel Low e posteriormente devolvido ao então Museu Raffles em Singapura, é hoje conhecido como a Pedra de Singapura. Atualmente, encontra-se em exibição na Galeria de História de Singapura, parte do acervo do Museu Nacional de Singapura.

A Pedra de Singapura e a lenda de Badang
O fragmento da Pedra de Singapura exposta no Museu Nacional de Singapura
A Pedra de Singapura e a lenda de Badang
O fragmento da Pedra de Singapura exposta no Museu Nacional de Singapura

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