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A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos

Situado na parte baixa entre as colinas, ao norte da cidade de Frejus, distrito de Cannes, no sul da França, não muito longe da costa da Riviera Francesa, se encontram os destroços da barragem de Malpasset. Essa barreira fluvial, concluída em 1954, foi construída para regular o fluxo do rio Reyran e armazenar água para a agricultura e uso doméstico. O rio Reyran é muito irregular. Ele permanece completamente seco na maior parte do ano, incluindo os meses quentes de verão, mas no inverno e na primavera, este rio de 27 quilômetros de extensão se torna uma torrente violenta. Uma represa ajudaria a domar o rio e forneceria água durante todo o ano.

O engenheiro André Coyne foi escolhido para construir uma represa em forma de arco de dupla curvatura no vale. Coyne vinha construindo represas ao longo de sua carreira. Ele foi o engenheiro-chefe de barragens no Alto Rio Dordonha e, enquanto estava nessa posição, projetou a barragem de Marèges, que incorporou vários avanços inovadores no projeto de barragens.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
As ruínas da barragem de Malpasset, no sul da França | Crédito da foto

Em 1935, ele se tornou o chefe do Departamento de Engenharia de Grandes Barreiras da França e, entre 1945 e 1953, atuou como Presidente da Comissão Internacional de Grandes Barreiras. Coyne construiu barragens em quatorze países, incluindo Portugal, Índia, Marrocos, Zimbábue e Canadá.

A construção da barragem de Malpasset começou em 1952 e foi concluída em 1954. Pouco depois, o primeiro enchimento do reservatório começou. O enchimento de um reservatório é um processo gradativo que pode levar muitos anos, principalmente quando é alimentado por um rio que flui apenas três meses por ano. Cinco anos depois, em 1959, a água do reservatório ainda estava sete metros abaixo do topo, quando pequenos vazamentos começaram a se desenvolver ao longo da margem direita da barragem – um sinal sinistro do que estava por vir.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
As ruínas da barragem de Malpasset, no sul da França | Crédito da foto

Naquele ano, a região sofreu chuvas superiores à média, fazendo com que o nível da água subisse quase cinco metros. Em vez de abrir o vertedouro para aliviar a pressão sobre a barragem, decidiu-se permitir o enchimento da mesma porque a abertura das válvulas de drenagem teria dificultado a construção da autoestrada Marselha-Nice cerca de um quilômetro em direção à foz. Na noite de dois de dezembro de 1959, o nível da água na barragem atingiu o topo da barreira de concreto pela primeira vez. Os quatro últimos metros foram preenchidos em menos de 24 horas.

Mais tarde naquela noite, às 21 horas e 13 minutos, as paredes finas da barragem desabaram sob o peso maciço da água e uma enorme onda de quarenta metros de altura varreu o vale, destruindo todas as estruturas, incluindo casas, estradas, linhas ferroviárias, redes de telefone e energia elétrica até Fréjus. Grandes pedaços de concreto da barragem rompida, alguns pesando até 600 toneladas, foram encontrados a mais de um quilômetro de distância. 423 pessoas morreram e sete mil dos 10 mil habitantes foram afetados. Andre Coyne, o engenheiro-chefe da barragem foi profundamente afetado pela tragédia. Ele morreu menos de um ano depois.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
As ruínas da barragem de Malpasset, no sul da França | Crédito da foto

A principal conclusão do desastre foi que era importante entender adequadamente a geologia das rochas sobre as quais uma barreira seria construída. Mas a consequência mais imediata do rompimento da barragem foi o estabelecimento de uma lei que legalizou o casamento com um parceiro morto.

Entre os mortos estava um jovem chamado André Capra, que estava noivo de sua namorada, Irène Jodart, na época. Apesar da morte de seu parceiro, Jodart estava determinada a se casar com ele. Quando o presidente do país, Charles de Gaulle visitou a cidade uma semana depois, Irène Jodart implorou a ele que a deixasse seguir com seus planos de casamento, embora seu noivo tivesse se afogado, o presidente concordou em investigar o assunto.

No prazo de um mês, a Assembleia Nacional aprovou uma lei única que permitia ao presidente da França autorizar casamentos póstumos (ou necrogamia), com base no artigo 171 do Código Civil daquele país, que declara:

O Presidente da República pode, por razões graves, autorizar a celebração do casamento se um dos futuros nubentes faleceu após a realização das formalidades oficiais considerando-se o consentimento inequívoco. Neste caso, os efeitos do casamento retroagem à data do dia anterior à morte do esposo. Entretanto, este casamento não confere qualquer direito à sucessão do esposo sobrevivente e não se considera que tenha existido propriedade matrimonial alguma entre os esposos.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
As ruínas da barragem de Malpasset, no sul da França | Crédito da foto

Centenas de viúvas e viúvos solicitaram o matrimônio post-mortem desde então. Quem deseja casar-se com um falecido deve enviar um pedido ao presidente, que o encaminha ao Ministro da Justiça, que o envia ao procurador em cuja jurisdição reside o sobrevivente. Se o promotor determinar que o casar planejava se casar antes da morte e se os pais do falecido aprovarem, o promotor envia uma recomendação de volta ao presidente, e se o mesmo achar por bem, assina um decreto permitindo o casamento.

Todos os anos, as autoridades francesas recebem cerca de cinquenta pedidos de casamento póstumo. Cerca de vinte deles obtêm aprovação. A gravidez por si só ou uma carta de promessa de casamento não são evidências aceitas per se, pois no caso das cartas, estas têm reputação de ilegitimidade.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
A represa Malpasset antes de sua ruptura | Crédito da foto

Embora muitos se casem por valor puramente sentimental, o matrimônio póstumo também desempenha um papel prático se a mulher deixada para trás estiver grávida, como foi o caso de Irène Jodart. A legitimação de um casamento garante que os filhos sejam reconhecidos como descendentes legítimos do pai falecido e herdeiro legal. Na verdade, a prática de casar com os mortos remonta à Primeira Guerra Mundial, quando namoradas enlutadas queriam assegurar a legitimidade de seus filhos cujos pais morreram na frente antes de poderem se casar.

A maioria dos casamentos póstumos é organizada discretamente. Normalmente, a mulher fica ao lado de uma foto de seu falecido noivo. Em vez de um padre, o prefeito conduzirá a cerimônia lendo em voz alta o decreto presidencial em vez dos votos de casamento do falecido.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos

Mas alguns casamentos chamaram a atenção da mídia. Em 2004, Christelle Demichel se casou com seu noivo morto que foi atropelado por um motorista bêbado e morto enquanto ele dirigia sua motocicleta para casa, vindo do trabalho. Em 2009, Magali Jaskiewicz casou-se com seu noivo – uma vítima de um acidente de avião.

O namorado de Magali que a pediu em casamento dois dias antes de ele ser morto. Novamente em 2017, quando um policial Xavier Jugelé morreu em um ataque terrorista no Champs Élysées, sua parceira de longa data, Etienne Cardiles recebeu a aprovação do presidente para se casar com ele. Fora da França, houve apenas um punhado de casos em que a lei sustentou os casamentos póstumos.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
Equipes procurando mortos nas duas aldeias dizimadas pela ruptura da barragem de Malpasset | Crédito da foto

Casamento fantasma

Na China há uma tradição rara, chamada de “casamento fantasma“, também conhecida como “minghun” ou casamento espiritual. Nessa forma de casamento, quando o noivo de uma mulher morre, de forma que esta participe no casamento fantasma, ela teria de participar do funeral desse homem, com padrões rigorosos de luto, fazer voto de celibato, e imediatamente ir residir com a família de seu noivo. Não há tais requerimentos para que um homem faça isso, nem isto foi registrado.

Na cultura chinesa, é vergonhoso ser pai ou mãe de uma filha não casada e frequentemente a sociedade rejeita mulheres não casadas. Da parte dos homens, os casamentos fantasmas frequentemente eram realizados em prol da descendência. Adicionalmente, o casamento fantasma para os homens garantem a continuidade da linhagem familiar. A viúva pode adotar um filho que continuará a linhagem da família de seu marido.

Outras razões para a realização dos casamentos fantasmas são os eventuais desejos dos espíritos desses homens em se casar. A tradição chinesa também diz que os irmãos mais novos não devem se casar antes de seus irmãos mais velhos, o que ocasionalmente também motiva a realização de um casamento fantasma para seguir a tradição.

A ruptura da barragem de Malpasset e o casamento de mortos
As ruínas da barragem de Malpasset, no sul da França | Crédito da foto

Levirato

Levirato é uma tradição relacionada aos casamentos póstumos. No levirato, o irmão de um homem morto é obrigado a casar-se com a viúva deste. Acredita-se que esta tradição foi estabelecida para dar apoio às viúvas e seus filhos. No entanto, o levirato pode ser considerado uma restrição à liberdade da mulher. Em certos casos, só são praticados quando um homem morre sem ter tido filhos de modo a dar continuidade à sua linha familiar.

Em Deuteronômio 25: 5-6, a Bíblia hebreia determina o levirato, denominado “yibbum”, para um homem cujo irmão morreu, a não ser que o irmão tenha tido um filho. Quando não se exige a realização do levirato (como no caso do irmão falecido que deixou pelo menos um filho) este é proibido em Levítico 16:18. Neste caso, um halitzah, que libera a viúva para casar-se com quem ela quiser, é tipicamente realizado neste caso em vez do levirato.

No Sudão, na África há uma tradição de que quando um homem comprometido para casar-se morre, seu irmão deve substituí-lo no casamento e todos os filhos que venha a ter serão considerados filhos de seu irmão falecido. Por sua vez, as mulheres se casam com os homens para dar continuidade à linhagem familiar deles: casando-se com homens falecidos, mantêm com elas a riqueza de seus maridos em vez de perder o direito a ela após casarem-se com outrem.

Fontes: 1 2 3

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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