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As histórias reais por trás da Lenda do Cavaleiro sem Cabeça

A "Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" é um conto folclórico de origem germânica, imigrado para os Estados Unidos. A história narra um cavaleiro decapitado que assombra a região de Sleepy Hollow.

Nesta época do ano nos Estados Unidos, as abóboras surgem nas portas das casas e com elas ressurge a clássica história de Washington Irving, “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” (The Legend of Sleepy Hollow). O conto fantasmagórico acompanha Ichabod Crane, um professor perspicaz, que se aventura na cidade assombrada de Sleepy Hollow. Lá, tem um encontro inquietante com o infame cavaleiro local, desaparecendo de maneira misteriosa para nunca mais ser visto. Washington Irving cita no livro:

“Uma aura sonhadora e onírica parece envolver a terra, permeando a própria atmosfera… É inegável que o lugar ainda permanece sob o domínio de algum poder mágico, enfeitiçando as mentes até dos mais sensatos, fazendo-os vagar em um devaneio contínuo.”

Apesar de ser um pilar do folclore americano, a inspiração por trás desse mito é universal. Na verdade, o trabalho de Irving é um mosaico de influências estrangeiras, história local e um toque de sobrenatural.

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As origens do Cavaleiro sem Cabeça podem ser encontradas em várias tradições europeias, mas a criatura de Irving é provavelmente inspirada por um relato histórico da Revolução Americana.

Os cavaleiros sem cabeça que inspiraram a história

“A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, assim como o folclore em diversas culturas, ecoa em narrativas de fantasmas sem cabeça cavalgando. Na Escandinávia e no norte da Europa, tais relatos persistem, como na tradição celta do Dullahan, um demônio montando um cavalo preto sem cabeça. Nas histórias do ciclo arturiano, Sir Gawain, um proeminente Cavaleiro da Távola Redonda, enfrenta o Cavaleiro Verde, que, após ser decapitado, continua cavalgando com a cabeça sangrenta.

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Uma ilustração do poema ‘The Wild Huntsman’ de Gottfried August Bürger.

“A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” também tem suas raízes no folclore germânico, trazido para a América pelos imigrantes dessa origem. A versão original da lenda foi registrada por Karl Musäus. Em um trecho de sua escrita (tradução aproximada):

O Cavaleiro sem Cabeça era frequentemente avistado. Um velho cético contou que cruzou caminho com o cavaleiro vindo do desfiladeiro. O cavaleiro o perseguiu através de arbustos, colinas e pântanos. Ao chegarem a uma ponte, o cavaleiro subitamente se transformou em esqueleto. Ele arremessou o velho dentro do riacho e saltou por sobre as copas das árvores, trotando com um estrondo de trovão.

A lenda mencionava que o cavaleiro não podia passar por uma ponte específica. O desfecho do conto fictício ocorria na Ponte do Rio Pocantico, nas proximidades da Velha Igreja de Sleepy Hollow. Os personagens de Ichabot Crane e Katrina Van Tassel possivelmente foram inspirados por moradores locais conhecidos pelo autor. Katrina teria sua base em Eleanor Van Tassel Brush, com seu nome derivado da tia de Eleanor, Catriena Ecker Van Tessel.

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A Lenda do Cavalheiro sem Cabeça é amplamente considerado o melhor trabalho de Washington Irving e o catapultou para a aclamação internacional.

“A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” se insere na tradição dos contos do folclore e poemas sobre acontecimentos sobrenaturais, como a obra “Tam o’ Shanter” (1790) de Robert Burns e “Der wilde Jäger” de Gottfried August Bürger, traduzido para o inglês como “The Wild Huntsman” (1796). Essas histórias compartilham elementos de mistério e lendas fantasmagóricas, imbuídas de uma aura sobrenatural.

Sua coleção de contos, “The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent.”, onde figura “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, reflete essa influência. A recorrência do tema da decapitação no folclore levou alguns estudiosos a sugerir que simbolizava a ansiedade em torno da castração masculina na sociedade. No entanto, o autor americano pode ter encontrado a inspiração mais próximo de casa.

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Os soldados hessianos eram tropas alemãs chamadas para ajudar as forças britânicas durante a guerra.

Como Lenda do Cavaleiro sem Cabeça foi inspirada na história de um soldado hessiano

Gigantesco em altura, e envolto em um manto, Ichabod ficou apavorado ao perceber que estava sem cabeça! Mas seu horror foi ainda maior quando viu que a cabeça, que deveria estar em seus ombros, estava diante dele, no seu selim!

O mito do soldado hessiano sem cabeça tornou-se popular após a Revolução Americana, quando soldados alemães de Hesse foram convocados para lutar na Guerra da Independência dos Estados Unidos. Um desses soldados teria sido decapitado por um canhão durante a Batalha das Planícies Brancas, em 1776, e dizia-se que ele foi enterrado na antiga igreja holandesa em Sleepy Hollow, perto de Tarrytown, Nova York. A lenda afirmava que ele emergia à noite em busca de sua cabeça, amaldiçoando qualquer pessoa que cruzasse seu caminho com a morte.

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A Antiga Igreja Holandesa onde o soldado hessiano sem cabeça teria sido enterrado.

Apesar de alguns céticos rejeitarem o aspecto sobrenatural, registros históricos confirmam a existência de um soldado hessiano decapitado. O general William Heath, em suas memórias de 1798, mencionou: “Um tiro de canhão americano neste local (Planícies Brancas) arrancou a cabeça de um artilheiro de Hesse.” Outro soldado, Anthony Maxwell, alegadamente testemunhou o evento e o relatou por muitos anos, conforme detalhado no livro “Era uma vez na Revolução Americana“.

Curiosamente, a história do soldado sem cabeça de Hesse era difundida no Nordeste dos EUA. De maneira ainda mais intrigante, Washington Irving, quando adolescente, residia em Tarrytown, a cerca de 16 quilômetros de White Plains (Planícies Brancas), onde se acredita que o incidente ocorreu.

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Acredita-se que Jesse Merwin, professor e amigo de Irving, esteja entre as pessoas reais que inspiraram o personagem de Ichabod Crane.

As pessoas e lugares reais por trás da Lenda do Cavaleiro sem Cabeça

A verdadeira raiz de “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” remonta aos primeiros anos de Washington Irving. Quando tinha apenas 15 anos, deixou sua cidade natal, Nova York, e chegou a Tarrytown, onde seu amigo James Kirke Paulding residia. No entanto, essa não foi uma visita casual. Por volta de 1798, a cidade de Nova York foi atingida pela febre amarela, uma doença que se originou na Filadélfia e levou à morte de 5.000 pessoas.

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A cidade de Sleepy Hollow, que na época de Irving era conhecida como North Tarrytown.

A família de Irving estava entre os privilegiados que podiam deixar a cidade em busca de refúgio. Refugiaram-se na intocada paisagem do Vale do Hudson, onde Irving descobriu uma afinidade pelo ar livre e pelos mistérios evocados pela arquitetura pitoresca e holandesa colonial.

Irving ficou particularmente encantado com as montanhas Catskill, que ele descreveu como exercendo um “efeito mágico” sobre sua imaginação, conforme detalhado em sua biografia. Esse sentimento influenciou consideravelmente a criação da “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”. Além de modelar a vila fictícia de Sleepy Hollow com base na cidade real de North Tarrytown, onde ele vivia, o autor gostava de atribuir nomes e características vagamente baseadas em pessoas reais aos seus personagens.

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A antiga mansão e ponte de Philipsburg, considerada a inspiração por trás da infame cena de perseguição na história do cavaleiro sem cabeça.

O protagonista da “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, Ichabod Crane, descrito como alguém que “poderia ser confundido com um espantalho que escapou de algum campo“, teria sido inspirado por Jesse Merwin. Merwin era amigo tanto do autor quanto de Martin Van Buren, o oitavo presidente dos EUA. Ele foi um professor que fez companhia a Irving durante sua estada em Kinderhook, em 1809.

A origem dos personagens da história é um emaranhado fascinante de possíveis inspirações. Enquanto alguns sugerem que o professor Ichabod Crane pode ter sido uma combinação de figuras reais como Samuel Youngs, tenente de Tarrytown e amigo da família Van Tassel (que também teria inspirado Irving e dado nome à lenda), além do verdadeiro oficial do exército, Ichabod B. Crane, que serviu durante a Guerra de 1812 em Fort Pike.

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O Coronel Crane, o protagonista de Sleepy Hollow de Irving, foi um verdadeiro oficial do exército durante a Guerra Anglo-Americana

A conexão entre Irving e o oficial Crane é nebulosa; embora tenham sido estacionados no mesmo local durante a guerra, não há evidências de que tenham se conhecido. Irving pode ter simplesmente apreciado o nome e decidido usá-lo em seu livro. Quanto a Katrina Van Tassel, o interesse amoroso de Crane, sua inspiração também parece ter raízes na vida real. Descrita por Irving como alguém “gordo como uma perdiz” e “maduro, derretido, com bochechas rosadas como um dos pêssegos de seu pai“, acredita-se que Van Tassel fosse vagamente inspirada por Eleanor Van Tassel Brush e possivelmente outras mulheres conhecidas por Irving.

Tara Van Tassell, descendente da família real, observou: “Na história de Irving, os Van Tassell têm dinheiro, mas é uma história baseada em muitas pessoas reais e num nome tirado de uma lápide.” A praga que assola a pequena cidade no livro de Irving também ecoa vagamente uma praga que afetou a família do autor. Em resumo, “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” mescla ficção, história e mistério, incorporando elementos reais e lendários para criar um conto de fantasmas inesquecível.

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Casa de Washington Irving em Sunnyside, Nova York.

Escrevendo a história de fantasmas mais popular da América

Em 1817, a família de Irving enfrentou um revés quando o pequeno escritório de advocacia que ele e seus irmãos gerenciavam faliu após os impactos da Guerra Anglo-Americana de 1812. Apesar do respeito que Irving já conquistara como escritor, as oportunidades de emprego na América eram escassas para ele naquele momento. Por isso, ele tomou a decisão de deixar Nova York e seguir para Birmingham, na Inglaterra, onde sua irmã Sarah e seu marido, Henry van Wart, já viviam permanentemente.

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O Cavaleiro sem Cabeça perseguindo Ichabod Crane. Ilustração de John Quidor, 1858

Foi nesse novo ambiente que Irving, cujo primeiro livro, “A History of New-York from the Beginning of the World to the End of the Dutch Dynasty“, havia alcançado um sucesso inesperado anos antes, encontrou uma nova fonte de inspiração para escrever. Uma conversa com seu genro reavivou lembranças de sua época no Vale do Hudson, despertando o interesse pelo passado holandês da comunidade e pelas lendas locais.

Movido pela inspiração, Irving passou uma noite inteira escrevendo. Na manhã seguinte, seus primeiros capítulos foram compartilhados com sua irmã e genro, que acabavam de se preparar para o café da manhã. Esses capítulos foram o embrião da sua coleção de contos, mais tarde conhecida como “The Sketch Book“. Publicada entre 1819 e 1820 sob o pseudônimo Geoffrey Crayon, a coleção de ensaios incluía o famoso conto “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça“.

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Ichabod Crane e uma figura de soldado fantasmagórica.

O “Sketch Book” recebeu elogios consideráveis em sua primeira publicação, contendo cinco ensaios. Uma das primeiras análises críticas veio do ex-parceiro editorial de Irving, Henry Brevoort, com quem Irving mantinha uma relação íntima e complexa ao longo dos anos. Entretanto, uma crítica anônima, publicada no jornal local por Brevoort, revelou que Irving era, na verdade, o talento criativo por trás do nome Geoffrey Crayon.

A aceitação do “Sketch Book” foi rápida na Inglaterra, conferindo a Irving o título de “o melhor escritor britânico que a América já produziu”. Os críticos destacaram especialmente a linguagem elegante e bem-humorada de Irving, concordando majoritariamente que a terceira história da sexta parte do livro, “Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, representava o ápice da coleção.

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A Lenda do Cavalheiro sem Cabeça foi publicado no sexto volume da coleção de curtas aclamada pela crítica de Irving, The Sketch Book

Releituras contemporâneas da clássica lenda

Desde que capturou a atenção do público pela primeira vez em 1820, “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” permanece como uma das mais duradouras histórias de fantasmas na América. Como toda obra literária influente, a lenda foi adaptada repetidamente em várias formas e até mesmo deu nome a muitas cidades e vilarejos nos EUA.

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A capa da versão de Mayne Reid da lenda do cavaleiro sem cabeça, publicada em 1865.

A primeira adaptação cinematográfica conhecida foi o filme mudo de 1922, “O Cavaleiro Sem Cabeça” (The Headless Horseman), e desde então tem sido contada inúmeras vezes. Uma das interpretações mais populares da famosa história de terror de Irving foi “Sleepy Hollow”, de 1999, um filme dirigido por Tim Burton, estrelando Johnny Depp como Ichabod Crane, desta vez retratado como um inspetor de Nova York.

Ichabod Crane investigará uma série de assassinatos na vila de Sleepy Hollow, e Christina Ricci como o interesse amoroso de Crane, Katrina Van Tassel. Apesar das opiniões mistas dos críticos, o filme foi um grande sucesso de bilheteria, arrecadando cerca de US$ 207 milhões em todo o mundo, e também recebeu o Oscar de Melhor Direção de Arte.

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Sleepy Hollow hoje ainda encanta com o turismo de sua pequena cidade assombrada.

Outra adaptação moderna foi a série da FOX de 2013, “Sleepy Hollow”, na qual o cavaleiro sem cabeça é representado como um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse. Não importa quantas vezes seja recontada, “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, com sua combinação única de folclore, história e misticismo, permanece uma história clássica que continua a alimentar o apetite do público pelo sobrenatural.

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Cartaz do filme A Lenda do Cavalheiro sem Cabeça
As histórias reais por trás da Lenda do Cavaleiro sem Cabeça
Washington Irving morreu em 28 de novembro de 1859, de ataque cardíaco em Tarrytown. 
Ele está enterrado no Cemitério Sleepy Hollow e seu túmulo é decorado em outubro para 
o Halloween

Todas as ilustrações antigas foram colorizadas por Inteligência Artificial

Fonte: 1 2

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