Histórias

De tinta a remédio: Como as múmias eram usadas no passado

Durante séculos, múmias foram pulverizadas e usadas como remédios na Europa, enquanto seus pigmentos marrons eram extraídos para fabricar tinta.

O betume natural, um dos antigos remédios da medicina árabe e persa, figura como um fascinante capítulo na história da cura. Avicena, o renomado cientista e médico do século XI, conhecido também como Ibn Sina, detalhou em suas obras o uso deste composto para tratar uma variedade de enfermidades, desde abscessos até hematomas, passando por fraturas e náuseas, além de úlceras. Sua fonte? A múmia, derivada da palavra “mum”, que remete à cera.

A jornada do conhecimento sobre esse remédio se desdobrou quando a Universidade de Salerno, na Itália, se deparou com os trabalhos científicos traduzidos de autores orientais. No entanto, os relatos dos estudiosos árabes e persas não explicavam a origem da múmia, uma vez que para os especialistas locais isso já era conhecido. Contudo, os europeus, ao depararem-se com uma palavra familiar, encontraram um novo campo de interesse. Começaram então a acrescentar suas próprias interpretações às traduções.

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Betume natural do Mar Morto

Gerard de Cremona, cientista italiano, descreveu a múmia como uma substância proveniente das terras onde corpos eram enterrados, embalsamados com aloé, resultando em uma mistura dos fluidos corporais que se transformavam nesse composto curativo. O século XIII marcou o período em que toda a Europa já acreditava que a múmia terapêutica poderia ser encontrada em tumbas egípcias, caracterizada por sua cor negra, viscosidade e densidade. Assim, através da fascinação, tradução e interpretação, a múmia tornou-se uma substância venerada na história da medicina medieval europeia.

No turbulento cenário do século XV, os corpos dos antigos egípcios assumiram um papel peculiar como fonte de remédios. Enquanto ladrões de túmulos operavam, os enterros mais modestos e recentes tornaram-se alvo, pois continham o valioso betume. Este composto, anteriormente associado a rituais funerários, agora emergia como uma alternativa acessível ao embalsamamento, substituindo a soda cáustica e a goma resinosa.

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Página da Cosmografia Universal de André Theve (1575) com gravura que ilustra a caça às múmias pela população local.

A resina do betume impregnava os tecidos de forma profunda, mesclando-se com eles de tal maneira que a distinção entre betume e os próprios ossos tornava-se visualmente desafiadora. No século XVI, um próspero mercado de múmias floresceu, oferecendo uma variedade de opções, desde a “Mumia vulgaris” as múmias comuns, a “Mumia arabus”, múmias árabes e a “Mumia sepulchorum” de múmias retiradas de tumbas egípcias. Na Europa, ansiava-se por essas relíquias como uma cura miraculosa.

O comerciante Johann Hellfirich, de Leipzig, embarcava em uma empreitada para adquirir no Egito pelo menos uma daquelas cobiçadas múmias “negras de carvão“, que os habitantes locais buscavam com fervor e vendiam aos comerciantes do Cairo. Um certo inglês, em 1580, lamentava: “Os corpos dos povos antigos, não deteriorados, mas intactos, são desenterrados diariamente. Esses cadáveres são as múmias que médicos e farmacêuticos nos forçam a engolir contra nossa vontade.” Assim, o comércio das múmias se estabeleceu como uma prática controversa, alimentada pela demanda por curas milagrosas em uma época marcada pela busca incessante por remédios.

À medida que a demanda por múmias excedia a oferta, uma sombra sinistra se erguia sobre o comércio. Com a escassez de múmias autênticas, começou-se a produzir falsificações a partir dos corpos de criminosos. Em 1564, o médico do rei de Navarra, Guy de la Fontaine, encontrou-se com um negociante de múmias no Cairo. Este último confessou que era ele próprio quem fabricava o produto, e ficou chocado ao saber como os europeus, conhecidos por seu refinado paladar, podiam ingerir algo tão repulsivo.

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Detalhe da múmia de Ramses I

O comércio clandestino revelava uma realidade sombria por trás do fascínio europeu por múmias. Enquanto os consumidores buscavam soluções milagrosas para suas enfermidades, os fabricantes sem escrúpulos estavam dispostos a explorar qualquer oportunidade para lucrar, mesmo que isso significasse recorrer a métodos repugnantes e antiéticos. A descoberta chocante de Guy de la Fontaine lançou luz sobre uma prática clandestina que subvertia os valores morais e as normas sanitárias da época.

A prática de tratar nobres com remédios feitos de múmias era comum, como testemunhado pelo hábito do rei francês Francisco I (1494-1547), que nunca saía para caçar sem uma bolsa de remédios contendo esse misterioso composto. O rei inglês Carlos II, carregava sua própria tintura caseira de crânio humano, que recebeu o apelido de Gotas do Rei. No entanto, uma epifania abalou as crenças estabelecidas: uma múmia árabe não era a mesma coisa que uma múmia egípcia. Amathus Lusitanus, de Portugal, atribuiu a confusão a tradutores incompetentes, uma visão compartilhada por Valery Kord, professor da Universidade de Wittenberg.

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Frasco de boticário para  
múmia  do século XVIII

A prática de consumir cadáveres para fins médicos, embora chocante aos olhos modernos, era aceita na época como parte da prática médica. Por exemplo, o rei dinamarquês Cristiano IV foi tratado de epilepsia com pó extraído de crânios de criminosos executados. No entanto, o grande problema era que esses remédios simplesmente não funcionavam. Ambroise Paré (1510-1590), médico de quatro reis franceses e pioneiro da cirurgia moderna, admitiu que prescrevera múmias centenas de vezes sem obter resultados significativos.

À medida que o século XVII chegava ao fim, os cientistas começaram a ridicularizar abertamente a prática do uso de múmias. O botânico francês Pierre Paume (1658-1699) detalhou meticulosamente como distinguir uma múmia verdadeira de uma falsa, concluindo que a substância era mais adequada para alimentar peixes. Surpreendentemente, esta não era uma piada isolada. Em “A Gentleman’s Rest” de 1686, Richard Blom sugere atrair peixes com uma mistura de múmia e sementes de cânhamo.

No século XVIII, o tratamento com remédios a base de múmias foi geralmente reconhecido como charlatanismo. No entanto, em 1798, a mania pela múmia alcançou um novo patamar quando Napoleão partiu para conquistar o Egito. Este episódio marcante na história ilustra tanto a persistência da crença em remédios antiquados quanto a influência das grandes figuras históricas na perpetuação dessas práticas.

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Exame de uma múmia

A campanha de Napoleão no Egito desencadeou uma verdadeira febre pelo exótico egípcio na Europa do século XIX. Papiros, talismãs em forma de escaravelhos e, é claro, múmias, tornaram-se objetos de desejo avidamente adquiridos. Nas ruas movimentadas do Cairo, os vendedores ofereciam corpos inteiros, embora fragmentos fossem vendidos com muito mais frequência.

Os turistas do século XIX, ávidos por uma fatia da história antiga, exploravam cestos onde os membros das múmias se projetavam como baguetes. Cabeças eram os produtos mais populares, enquanto as múmias provenientes de tumbas ricas eram consideradas as mais valiosas e, consequentemente, as mais caras.

Apesar da macabra natureza do comércio, os preços eram irrisórios: uma cabeça podia ser adquirida por meras 10 a 20 piastras egípcias. Todo esse comércio, porém, ocorria de forma ilegal, com as relíquias sendo contrabandeadas para a Europa.

Um exemplo emblemático dessa obsessão é a história do escritor Gustav Flaubert, que por 30 anos manteve em sua mesa um pé mumificado, adquirido no Egito, que ele descreveu como rastejando “como um verme” pelas cavernas. Essa narrativa ilustra não apenas a fascinação da época pela cultura egípcia, mas também a moralidade questionável que permeava o comércio de artefatos históricos.

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Recipientes farmacêuticos para múmia. 
Alemanha, século XVIII

As múmias, outrora consumidas como remédios, agora se tornaram atrações por direito próprio. O ato de desenrolar as bandagens que envolviam os corpos mumificados tornou-se o clímax de festas e espetáculos pagos, frequentemente seguidos por palestras populares sobre ciência.

O trabalho de despir já começou. O envelope superior de bandagens de linho áspero foi aberto com uma tesoura. O leve cheiro de bálsamo, especiarias e aromáticos enchia a sala, lembrando os cheiros de uma farmácia. Então a ponta da bandagem foi encontrada e a múmia foi colocada em pé para que o desenrolador pudesse se mover livremente ao redor dela… E então dois olhos brancos com pupilas pretas brilharam com sua vida artificial. Eram olhos esmaltados, que geralmente eram inseridos em múmias cuidadosamente elaboradas“, descreveu o escritor Théophile Gautier na exposição apresentada na Exposição de Paris em 1855.

Essas descrições pintam um quadro vívido de como as múmias se tornaram uma fonte de fascínio e entretenimento para o público. O ato de revelar os segredos dos antigos egípcios proporcionava uma experiência sensorial única, transportando os espectadores para um mundo distante e misterioso. Assim, as múmias passaram de objetos de curiosidade científica para ícones de espetáculos populares, encapsulando a fascinação do século XIX pela arqueologia e pelo exotismo oriental.

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Vendedor ambulante de múmias, Egito, 1875

Os apelos ao respeito pelos sepultamentos e restos mortais dos egípcios começaram a ganhar destaque apenas no final do século XIX. No entanto, antes de serem exibidas em museus, as múmias ainda desempenhavam um papel peculiar na arte: serviam como pigmento para pinturas.

Durante cerca de duzentos anos, artistas europeus utilizaram o pó de múmias como um pigmento marrom. Acreditava-se que esse material oferecia boa transparência e era conveniente para trabalhar em detalhes finos. No entanto, em 1837, o químico inglês George Field, em um tratado sobre tintas e pigmentos, chegou a uma conclusão que ecoaria por gerações: “Não podemos esperar alcançar algo verdadeiramente excepcional espalhando sobre a tela os restos mortais da esposa de algum Potifar, o que poderia ser alcançado com materiais mais respeitáveis e duráveis.

Essa observação marcou o fim de uma prática que agora é considerada moral e eticamente questionável, destacando a crescente conscientização sobre a dignidade e o respeito devido aos restos mortais e sepultamentos de outras culturas. O pronunciamento de Field representou uma mudança de paradigma na história da arte, afastando-se do uso de materiais macabros e transitando para substâncias mais éticas e duradouras.

Um momento simbólico no que ficou conhecido como “canibalismo artístico” foi marcado por um incidente que ocorreu em junho de 1881, envolvendo o renomado pintor inglês Edward Burne-Jones. Durante um almoço no jardim com amigos, um deles mencionou ter recebido um convite para observar uma múmia sendo transformada em pigmento em uma oficina de pintura. Burne-Jones inicialmente argumentou que o termo “tinta múmia” provavelmente se referia apenas à semelhança de cor, rejeitando a ideia de que fosse feita de corpos humanos. No entanto, seus amigos o convenceram do contrário.

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Um exemplo do uso intensivo do pigmento “Múmia marrom” é frequentemente citado como a pintura “Interior de uma cozinha” de Martin Drolling (1815)

Comovido pela revelação, Burne-Jones levantou-se abruptamente da mesa e retornou com um tubo de tinta múmia marrom. Ele expressou o desejo de proporcionar um enterro digno para o pigmento. Os presentes, então, cavaram um buraco e realizaram uma solene cerimônia de sepultamento para o tubo de tinta. A filha do proprietário, de apenas 15 anos, plantou flores sobre o túmulo improvisado.

Este evento ilustra um momento de reflexão e mudança na consciência dos artistas em relação ao uso de materiais feitos de restos humanos. A atitude de Burne-Jones e seus amigos simboliza uma rejeição crescente ao uso de substâncias macabras na arte, ao mesmo tempo em que demonstra um respeito renovado pela dignidade e integridade dos restos mortais humanos. Este episódio marcou um ponto de virada no entendimento e na prática artística, ecoando uma nova era de sensibilidade e ética na comunidade artística.

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Magnus Mundi

Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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