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Mokomokai: as cabeças maori tatuadas

No início do século 19, ocorreu um comércio desumano na Nova Zelândia envolvendo o povo indígena Maori e os comerciantes europeus. Durante esse período, os ocidentais forneciam armas de fogo aos ilhéus, enquanto os Maori, por sua vez, ofereciam aos mercadores ingleses as cabeças decapitadas e mumificadas de seus falecidos, conhecidas como mokomokai. Essas cabeças eram apreciadas por sua arte em tatuagem, representando valiosos artefatos maori.

As tatuagens faciais, conhecidas como moko, eram amplamente praticadas pelo povo Maori e desempenhavam um papel significativo em sua cultura. Essas tatuagens iam além de meras expressões artísticas e possuíam profundos significados sociais, políticos e religiosos. Elas eram um símbolo de status elevado e classificação dentro da sociedade Maori, e cada desenho carregava informações sobre a linhagem, tribo, ocupação, classificação e realizações de uma pessoa.

Coleção Mokomokai do oficial do exército britânico Horatio Gordon Robley. 
Foto: 
Wikimedia Commons

Receber um moko representava um marco importante na vida de alguém e frequentemente coincidia com ritos de passagem, como a chegada à idade adulta durante a puberdade. Era uma forma de afirmar a identidade e o pertencimento a uma comunidade, além de expressar a conexão com os antepassados e a espiritualidade.

Ao contrário das tatuagens modernas, os moko eram aplicados de maneira tradicional, utilizando cinzéis e pigmentos naturais. O processo era doloroso e exigia habilidade por parte dos tatuadores, que eram considerados mestres em sua arte. Cada moko era único e individualizado, refletindo a personalidade e a história da pessoa que o ostentava.

Tatuagem facial do chefe maori Tuterei Karewa. 
Foto: 
Wikimedia

Embora o comércio de cabeças tatuadas tenha ocorrido em um período histórico específico, é importante enfatizar que os moko têm uma importância cultural profunda para o povo Maori e devem ser apreciados e compreendidos em seu contexto cultural mais amplo. Hoje em dia, o moko continua a ser usado e valorizado como uma forma de preservar a identidade e as tradições maori.

Quando uma pessoa com moko falecia, era comum preservar sua cabeça como uma prática cultural entre os Maori. O processo de preservação envolvia várias etapas cuidadosas. Primeiramente, o cérebro e os olhos eram removidos e os orifícios resultantes eram selados com fibra de linho e goma. Em seguida, a cabeça era fervida ou cozida no vapor para auxiliar na remoção da pele e dos tecidos moles. Posteriormente, ela era defumada em fogo aberto e deixada para secar ao sol por vários dias. Para finalizar o processo de preservação, a cabeça era tratada com óleo de tubarão, o que ajudava a manter sua integridade.

Tatuagens Moko no rosto do chefe Maori Tāmati Wāka Nene. 
Foto: 
Wikimedia

As cabeças preservadas, conhecidas como mokomokai, adquiriam um valor especial e se tornavam preciosos tesouros familiares. Eram mantidas com grande reverência e geralmente só eram exibidas em ocasiões especiais, como cerimônias tradicionais, rituais ou eventos importantes para a comunidade.

É importante compreender que essa prática de preservação das cabeças, embora possa parecer incomum ou chocante em nossa perspectiva contemporânea, fazia parte da cultura e das crenças dos Maori naquele período histórico. Cada mokomokai era considerado um artefato sagrado, representando a conexão com os ancestrais e a continuidade da linhagem.

Tatuagens Moko no rosto do chefe Maori Tomika Te Mutu. 
Foto: 
Wikimedia

De fato, os Maori também praticavam a captura das cabeças de chefes inimigos mortos em batalhas e as transformavam em mokomokai. Essas cabeças adquiriam um significado especial nas questões relacionadas à guerra e à paz. Elas desempenhavam um papel importante em rituais e cerimônias associados a esses contextos.

As cabeças de chefes inimigos capturadas pelos Maori eram consideradas troféus de guerra e símbolos de prestígio e poder. Eram exibidas em ocasiões específicas para demonstrar a coragem e a habilidade militar do grupo. Além disso, essas cabeças também eram utilizadas nas negociações diplomáticas entre tribos em conflito.

Uma cabeça de mokomokai que foi devolvida à Nova Zelândia.

O retorno e a troca de mokomokai entre as tribos eram vistas como pré-condições essenciais para o estabelecimento da paz. Essa prática representava uma forma de honrar os inimigos caídos e encerrar o ciclo de hostilidades. A devolução das cabeças capturadas era considerada um gesto de respeito e um sinal de boa vontade para alcançar um acordo pacífico.

Em 1770, durante a visita do HMB Endeavour capitaneado por James Cook à Nova Zelândia, o botânico Joseph Banks teve um encontro com um idoso Maori em uma canoa, que possuía três cabeças a bordo. Banks insistiu que o homem abrisse mão das cabeças, porém, ele hesitou.

Diante disso, Banks ameaçou cancelar a troca que haviam acordado, a menos que o homem estivesse disposto a vender suas cabeças. Sem alternativas, o Maori foi forçado a vender a cabeça de um adolescente de 14 anos em troca de uma cueca. Essa transação marcou a primeira vez em que um mokomokai foi adquirido por um europeu, e sem dúvida despertou grande interesse quando a cabeça decepada foi levada de volta à Inglaterra.

Um esboço do inglês Horatio Gordon Robley, que colecionava mokomokai. É intitulado: “Barganhando por uma cabeça, na praia, o chefe subindo o preço.”

Ao longo dos anos, mais mokomokai foram negociados com os Maori, e essas cabeças tatuadas foram vendidas como curiosidades, obras de arte e espécimes para museus, alcançando altos preços na Europa e na América.

É importante destacar que essas práticas de comércio e aquisição de mokomokai pelos europeus ocorreram em um contexto histórico específico, caracterizado pela colonização e pela exploração de culturas indígenas. Essas transações foram amplamente influenciadas por atitudes etnocêntricas e desrespeitosas em relação à cultura Maori.

Hoje em dia, há um crescente reconhecimento da importância cultural e espiritual dos mokomokai para o povo Maori, e os esforços estão sendo feitos para repatriar e devolver essas cabeças aos seus lugares de origem, em respeito à cultura e aos desejos das comunidades Maori envolvidas.

Mulheres também podem fazer moko facial

Durante o período em que as armas de fogo foram introduzidas na Nova Zelândia, elas se tornaram um item altamente valorizado para troca entre os Maori. A guerra sempre foi uma parte da vida tradicional Maori, porém, a introdução das armas de fogo mudou a dinâmica dos conflitos. As tribos que adquiriam essas armas obtinham uma grande vantagem sobre seus vizinhos, o que obrigava outras tribos da região a buscar armas para se protegerem, recorrendo a diversos meios para obtê-las.

Inicialmente, os Maori trocavam bens como linho, batatas, escravos e até mesmo cabeças tatuadas por armas e munições. No entanto, à medida que a demanda por cabeças tatuadas aumentou, outros itens comerciais começaram a ser considerados menos valiosos. Por exemplo, a troca de duas toneladas de linho era necessária para adquirir um mosquete, enquanto apenas duas cabeças poderiam ser utilizadas para fazer a mesma negociação.

Essa mudança na percepção de valor demonstra como as cabeças tatuadas, conhecidas como mokomokai, se tornaram extremamente cobiçadas nesse período. A demanda por elas era alta, tanto para fins comerciais quanto como objetos de curiosidade e arte. Esse comércio desigual refletia as dinâmicas de poder desequilibradas causadas pela introdução das armas de fogo na sociedade Maori.

Quando os Maori se envolveram na corrida armamentista, a situação tornou-se desesperadora. Em busca de armas, eles recorreram a práticas extremas, como a tatuagem de escravos e prisioneiros antes de decapitá-los e vendê-los. Em alguns casos, as tatuagens eram realizadas após a morte dessas pessoas.

A introdução das armas de fogo na Nova Zelândia teve efeitos devastadores, resultando em conflitos sangrentos entre as tribos, conhecidos como Guerras de Mosquetes(1807-1842). Estima-se que entre 20.000 a 40.000 pessoas tenham perdido a vida nesses conflitos, além de muitos maori terem sido escravizados, totalizando dezenas de milhares.

Essa época de intensos conflitos e mudanças sociais teve um impacto profundo na sociedade Maori. A chegada das armas de fogo alterou drasticamente a natureza das guerras e das relações entre as tribos. A busca por armas e o poder militar resultante levaram a uma série de consequências trágicas para o povo Maori, incluindo a perda de vidas, a escravização e a desestabilização das estruturas sociais e políticas.

Em 1831, o governador de Nova Gales do Sul emitiu uma proclamação proibindo o comércio de cabeças fora da Nova Zelândia. Durante a década de 1830, a demanda por armas de fogo diminuiu significativamente, uma vez que os grupos Maori remanescentes já estavam amplamente armados. Em 1840, o Tratado de Waitangi foi assinado e a Nova Zelândia tornou-se uma colônia britânica. Nessa época, o comércio de exportação de mokomokai havia praticamente cessado.

Os Maori também pararam de preservar as cabeças de amigos e parentes, seja por respeito ou pelo medo de que essas cabeças fossem roubadas, devido à demanda geral pelos mokomokai. A própria prática de tatuagem facial (Moko) começou a declinar. Como explicou o Reverendo G. Woods: “Em primeiro lugar, nenhum homem bem tatuado estava seguro por uma hora, a menos que fosse um grande chefe, pois ele poderia ser vigiado a qualquer momento até que estivesse desprevenido, derrubado e morto, e sua cabeça vendida aos comerciantes”.

Apesar da proibição do comércio, as cabeças tatuadas continuaram sendo vendidas por alguns anos. Estima-se que durante o auge do comércio de mokomokai, entre 1820 e 1831, centenas dessas cabeças tenham sido compradas e vendidas na Europa e na América. Algumas foram repatriadas para a Nova Zelândia, mas muitas permanecem em museus e coleções particulares ao redor do mundo.

Hoje em dia, há um crescente movimento de repatriação das cabeças Maori, buscando devolvê-las à Nova Zelândia, em reconhecimento ao seu significado cultural e espiritual para as comunidades Maori. A devolução desses artefatos é vista como um passo importante no processo de reconciliação e valorização da cultura e identidade Maori.

Fontes: 1 2

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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