Coisas & Cultura

Pedras de Bezoar, as pedras criadas no estômago

O bezoar, uma formação peculiar que pode ser descrita como uma massa ou concreção, é comumente encontrado no sistema gastrointestinal, especialmente no estômago de animais ruminantes, embora também ocorra em outros animais, incluindo seres humanos. Variedades de bezoares podem apresentar componentes tanto inorgânicos quanto orgânicos.

A presença de bezoares não é um fenômeno novo e remonta ao menos ao século 12 a.C. O termo deriva das palavras árabes “bad-zehr” ou persa “pad-zehr“, significando antídoto. Considerados de valor inestimável por quem os possuía, até meados do século 18, essas formações eram incluídas na farmacopeia de Londres como uma espécie de panaceia para todos os males e pragas. Ao longo do tempo, à medida que a ciência médica evoluiu, o status mágico atribuído aos bezoares gradualmente cedeu lugar a uma compreensão mais clínica e cirúrgica de sua natureza.

Atualmente, os bezoares, além de seu aspecto bizarro e histórico curioso, têm um significado principalmente na prática cirúrgica. Embora tenham perdido seu apelo mágico e tenham deixado de ser considerados panaceias, os bezoares continuam a fascinar a comunidade médica como formações peculiares e, ocasionalmente, desafios clínicos que exigem intervenção cirúrgica para sua remoção.

Pedras de Bezoar, magia, ciência e arte
Bezoar de Alpaca | Crédito da foto

Os bezoares foram introduzidos na medicina ocidental pelos médicos árabes, que acreditavam que essas formações poderiam curar e neutralizar os efeitos de diversos venenos. Embora não tenham mostrado eficácia universal contra todos os venenos, alguns tipos específicos, como os tricobezoares (bezoares formados com cabelos), foram reconhecidos por cancelar os efeitos do arsênico. Na Idade Média, essa crença na propriedade antídoto dos bezoares levou a práticas curiosas, como a colocação dessas pedras nas bebidas da realeza, por temor de envenenamento. Além disso, o arroz, conhecido por ser rico em arsênico na época, era frequentemente cozido com essas pedras como medida preventiva.

O termo “mad stone” (pedra louca) também era utilizado para se referir aos bezoares nesse contexto histórico. Essa designação pode ter derivado da ideia de que as pedras tinham propriedades mágicas ou milagrosas, especialmente quando se tratava de neutralizar venenos. A presença dessas pedras na culinária e na proteção contra envenenamento revela o quão profundamente enraizada estava a crença nos bezoares como uma panaceia na sociedade medieval. Embora muitas dessas crenças tenham sido desmitificadas ao longo do tempo, a história dos bezoares destaca a fascinante interseção entre a medicina, a superstição e a cultura ao longo dos séculos.

Pedras de Bezoar, magia, ciência e arte
Crédito da foto

Na época, os boticários eram conhecidos por alugar ou vender bezoares a preços exorbitantes. O uso dessas formações tornou-se generalizado durante o século 16, atingindo um valor que frequentemente ultrapassava em dez vezes o peso equivalente em ouro. Estes objetos raros e valiosos eram considerados itens de grande prestígio, levando muitos reis a possuir um ou mais espécimes, muitos dos quais eram até mesmo montados como peças de joias.

Durante os séculos 16 e 17, médicos dedicaram extensas análises sobre os bezoares, descrevendo minuciosamente suas propriedades e usos. A fascinação com essas formações era tão intensa que permeou as esferas médica e aristocrática da sociedade. Nesse período, houve uma introdução significativa dos chamados “bezoares orientais”, predominantemente provenientes de suínos asiáticos, ampliando ainda mais a diversidade de bezoares disponíveis no mercado.

A demanda por bezoares nesse contexto reflete não apenas a busca incessante por antídotos eficazes na época, mas também a valorização cultural e simbólica atribuída a essas misteriosas pedras. Sua presença em cortes reais como objetos de prestígio e joias ilustra a reverência que essas formações conquistaram na sociedade da Renascença e do início da Idade Moderna.

Pedras de Bezoar, magia, ciência e arte
Bezoar de elefante | Crédito da foto

Tipos por conteúdo

Tricobezoar é um bezoar formado por cabelo. Há casos nos quais se formam pelo próprio cabelo ou pelos do portador, tanto pessoa como animal. No passado, se chamava síndrome de Rapunzel, quando o bezoar se estendia pelo intestino delgado, formando uma cauda.
Farmacobezoar é um bezoar formado por medicamentos.
Fitobezoar é composto por materiais orgânicos não digeríveis (nos humanos, por exemplo, a celulose).
Lactobezoar composto de coalho de leite não digerido.
Pseudobezoar, quando o mesmo é engolido propositalmente.

Os bezoares mais notáveis, conhecidos como pedra bezoar ou gema bezoar, começam a partir de materiais como areia e pedras, acumulando camadas de cálcio ao longo do tempo em sua superfície, de maneira semelhante à formação de pérolas em ostras. Esses bezoares são apreciados por sua beleza e são considerados pedras semipreciosas. No passado, muitos bezoares eram designados como pedras, objetos únicos e altamente valiosos devido ao seu suposto poder de cura contra uma variedade de venenos. Em algumas práticas, esses objetos eram combinados com outros antivenenos, como ametista, esmeralda esmagada e o místico “Chifre do Unicórnio” (na verdade, o chifre do narval).

Embora o primeiro caso autêntico de tricobezoar humano tenha sido descrito por Baudamant em 1779, os bezoares eram conhecidos muito antes da era cristã, carregando consigo uma aura de misticismo. Encontrados com frequência no trato digestivo de ruminantes, eram considerados talismãs ou antídotos capazes de proteger seus portadores contra uma variedade de males, como pragas, envenenamentos, epilepsia, lepra e outras doenças. Essas crenças revelam não apenas a fascinação histórica pelos bezoares, mas também o papel significativo que desempenharam em diversas culturas como objetos de poder e proteção.

Pedras de Bezoar, magia, ciência e arte
Bezoar de cobra, no passado usado como remédio para picada de cobra | Crédito da foto

Do ponto de vista médico, os bezoares humanos ganharam relevância clínica por serem agentes causadores de diversas patologias digestivas, incluindo obstruções, intussuscepções, sangramentos, perfurações, além de estar associados a condições como enteropatias, pancreatites, apendicites e icterícia obstrutiva.

A dificuldade em obter bezoares levou à produção de inúmeras falsificações perigosas, muitas vezes contendo substâncias altamente tóxicas, como cinábrio, mercúrio e antimônio. Possivelmente devido a essas práticas arriscadas, o uso dos bezoares diminuiu significativamente no final do século 17, e a partir do século 19, deixaram de ser amplamente utilizados. Em termos mineralógicos rigorosos, os bezoares não são considerados pedras.

No entanto, o mineralogista e médico flamengo, Anselm Boetius de Boodt (1550-1632), os incluiu em sua obra “Gemmarum et Lapidum Historia” (História de Gemas e Pedras, 1609), sendo seu estudo um capítulo marcante na história da toxicologia. Este cenário destaca não apenas a transição na compreensão científica dos bezoares, mas também a percepção crítica de sua toxicidade e o papel desempenhado por essas formações na evolução da medicina.

Pedras de Bezoar, magia, ciência e arte
Bezoar de cobra | Crédito da foto

A Pedra de Goa, também conhecida como Pedra Cordial, era um bezoar artificial meticulosamente preparado pelos boticários jesuítas no Convento de São Paulo, localizado em Goa, na Índia Portuguesa, durante os séculos 17 e 18. Esta singular formação era elaborada conforme uma receita secreta, utilizando uma mistura complexa de ingredientes, incluindo argila, lodo, conchas, âmbar, almíscar, resina, pó de dente de narval, pedras preciosas e ópio.

A Pedra de Goa não apenas era considerada uma curiosidade, mas também era utilizada como um remédio para diversos males, como dores e febres. Sua aplicação envolvia esfregar a pedra ou raspar parte dela para aproveitar suas supostas propriedades medicinais. Um exemplar intacto, acompanhado pelo respectivo cálice de prata, pode ser apreciado pelos visitantes no Museu da Farmácia de Lisboa, representando um fascinante testemunho da prática farmacêutica e medicinal da época, marcada pela combinação de conhecimentos tradicionais e ingredientes exóticos.

Na Idade Média os bezoares eram envoltos em metais com uma argola para que pudessem ser mergulhados em bebidas suspeitas de conter veneno ou usado no pescoço como um amuleto | Crédito da foto

Já na Idade Média havia céticos em relação às capacidades da estranha pedra. Um exemplo marcante ocorreu no início do século XIX, quando o líder persa Feth Ali, após perder uma guerra para os russos, buscando ajuda de Napoleão para reforçar seu exército, trouxe presentes caros, incluindo três pedras de bezoar. Ao examinar os presentes, Napoleão, desconfiado, ordenou ao químico Claude-Louis Berthollet que as analisasse. O químico ao quebrar uma das pedras, descobriu-se de que elas eram de origem vegetal, com depósitos minerais, levando o imperador a jogá-las na lareira, mesmo sendo tão valorizadas na época.

Crédito da foto

A eficácia questionável do bezoar contra envenenamento foi posteriormente corroborada pelo cirurgião francês Ambroise Paré. Ele propôs realizar um experimento prático: administrar uma bebida envenenada junto com um bezoar para verificar seus efeitos. Um cozinheiro condenado à forca foi escolhido como voluntário e oferecido para beber uma mistura envenenada contendo o bezoar. O resultado foi a angustiante experiência do cozinheiro, que sofreu por sete horas antes de falecer, demonstrando a ineficácia do bezoar como antídoto. Este episódio marcante contribuiu para questionar as crenças generalizadas sobre os poderes milagrosos das pedras de bezoar.

Bezoar de corujas | Crédito da foto

Certamente, muitas pessoas já ouviram falar sobre a presença de pedras no estômago, e é possível que essas pedras sejam bezoares. Originados por diversas causas, esses bezoares podem causar desconforto, especialmente quando atingem tamanhos consideráveis. Na medicina, já foram documentados casos de remoção de bezoares gigantes, pesando até 1 kg, que preenchiam completamente o estômago e os intestinos, ou pedras de até 30 cm no estômago. Contudo, é mais comum encontrar bezoares de menor tamanho, os quais podem ser tratados com medicamentos. Em situações em que não podem ser esmagados e removidos por meio de medicação, a intervenção cirúrgica torna-se necessária.

Bezoar de cavalo. Quando encontrados nos intestinos dos cavalos na Califórnia, EUA, são chamados de enteroliths ou intestinal stones | Crédito da foto

Os fitobezoares se formam devido à não dissolução de substâncias orgânicas pelo suco gástrico. Um exemplo notável são os diospirobezoares, obtidos a partir de resíduos de caqui. Em um caso registrado em 2008, esses bezoares foram com sucesso decompostos utilizando Coca-Cola comum. Inicialmente, o paciente recebeu a bebida diretamente na área da pedra através de uma sonda, mas não houve resultados positivos.

Em seguida, o paciente começou a consumir de 0,5 a 1 litro da bebida por dia antes das refeições durante três semanas. Os exames subsequentes mostraram que o bezoar havia reduzido pela metade e amolecido, possibilitando sua remoção com pinças e a realização de litotripsia sob endoscopia. Esse caso ilustra a variedade de abordagens médicas para lidar com bezoares, desde tratamentos medicamentosos até soluções menos convencionais, dependendo da natureza e da gravidade do caso.

Bezoar de equino | Crédito da foto
Crédito da foto
Bezoar de cavalo. Este exemplar é considerado o maior já encontrado | Crédito da foto

Artigo publicado originalmente em julho de 2016

Fontes: 1 2 3 4

Leia também:

Fulguritos: os filhos do trovão

O mundo raro, caro e estranho dos minerais

Meteorito Willamette, um colosso de ferro e níquel

Avalie este artigo!
[Total: 0 Média: 0]
Atenção! Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do usuário e não expressa a opinião do site.

Magnus Mundi

Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

Adicionar comentário

Clique para deixar um comentário