Histórias

A farsa sobre a derrubada da Grande Muralha da China

Estamos na era das “fake news”, um termo inglês usado para designar notícias falsas que são difundidas nas redes sociais para os mais diversos fins. Mas notícias mentirosas e propagandas enganosas são tão antigas quando a história escrita, espalhadas por indivíduos para se engrandecer, manchar a imagem pública de algum desafeto, ou mesmo por puro prazer. Há também jornais sensacionalistas, que gostam de artigos escandalosos e exagerados para aumentar as vendas e a circulação.

Embora esse tipo de irresponsabilidade da mídia seja frequentemente visto entre jornais concorrentes, houve uma época em que quatro jornais conspiraram para publicar uma mentira descarada. A ideia era que, se todos os quatros jornais publicassem a mesma mentira, poucos questionariam sua autenticidade.

A tramoia foi planejada em uma noite de verão de 1899, com bebidas no bar do Hotel Oxford, no centro de Denver, Colorado, nos Estados Unidos, após se encontrarem ao acaso na estação de trem Denver Union Station. Os quatros homens envolvidos na trama eram Al Stevens, Jack Tournay, John Lewis e Hal Wilshire – todos repórteres dos quatro jornais da cidade de Denver, que seriam: o Denver Post, Denver Republican, Denver Times e o Rocky Mountain News. Cada um foi encarregado por seus editores de arrumar algo interessante para entreter seus leitores, e nenhum deles tinham nada para colocar em pauta.

De acordo com um artigo publicado pelo escritor de Denver, Harry Lee Wilber, em 1939 – quarenta anos após o evento -, foi Al Stevens, o repórter do jornal Denver Republican, que sugeriu que eles inventassem uma história. Denver, na época – observou o jornal Denver Post anos mais tarde – estava “cheio de jornalistas eticamente desafiados“. O escritório do jornal no centro de Denver era conhecido como “The Bucket of Blood” (O balde de sangue) por causa de suas manchetes sensacionalistas, onde a violência era destaque.

A farsa sobre a derrubada da Grande Muralha da China

Harry Tammen, co-proprietário do Denver Post, gostava de sensacionalismos, e uma vez comentou: “O público não apenas gosta de ser enganado, mas insistem nisso“. Tammen comprou o problemático jornal Denver Evening Standard em 1895 e mudou seu nome para Denver Post. Sob sua administração, o jornal cresceu e, em três anos, um em cada cinco moradores da cidade lia o jornal. A intenção de Tammen, como qualquer dono de jornal e editor da época, era ganhar dinheiro, e não estabelecer padrões éticos jornalísticos. Eles aproveitaram todas as oportunidades para chantagear e intimidar pessoas de destaque e coagi-las a garantir publicidade e cooperação. Enfim, o Denver Post era rápido em florear qualquer história ou aumentar fatos para vender jornais.

Naquela noite, Al Stevens instigou os outros, quando disse: “Não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou inventar uma história. Não vai machucar e nem prejudicar ninguém, então que diabo, porquê não!” Nenhum dos três discordou. Ao contrário, todos concordaram e decidiram que, em vez de inventar quatros histórias separadas, criariam uma única mentira coerente – que despertaria o interesse do público, mas que não pudesse ser facilmente desacreditada. Os quatros debateram varias ideias e decidiram definir que a história tinha que se passar num país estrangeiro.

Os repórteres começaram então a pensar algo que pudesse despertar interesse dos eleitores que fosse de países como Alemanha, Rússia e Japão, até que um dos repórteres sugeriu a China. John Lewis ficou animado e exclamou: “É isso, a Grande Muralha da China! Deve ter mais de cinquenta anos que ela não é notícia. Vamos construir a nossa história em torno disso. Vamos fazer um favor real aos chineses, e resgatar o monumento!

A farsa sobre a derrubada da Grande Muralha da China

Então, eles inventaram uma história na qual os chineses planejavam demolir a Grande Muralha, construindo uma estrada em seu lugar e recebendo ofertas de empresas americanas para o projeto. O engenheiro de Chicago Frank C. Lewis estava concorrendo pelo trabalho. A história descreveu um grupo de engenheiros de Denver a caminho da China para trabalhar na demolição.

Embora um dos repórteres se preocupasse com as consequências de uma história tão descabida, acabou sendo ignorados pelos outros. Deixando o Oxford Bar, eles foram ao Windsor Hotel, assinaram quatro nomes fictícios para o registro e de lá, cada um saiu com a história a ser publicada em seus respectivos jornais. Os repórteres juraram que manteriam essa história como verdadeira, desde que os outros ainda estivessem vivos.

A farsa sobre a derrubada da Grande Muralha da China

A falsa história foi publicada em 25 de junho de 1899, mas por razões desconhecidas, dois jornais não publicaram na como uma manchete com letras garrafais na primeira página, em vez disso, a colocaram dentro das páginas do meio e do verso. Já o Times O Rock Mountain News acabou não publicando a notícia, apesar de seu repórter ser parte da farsa.

Embora os jornais de Denver tenham esquecido a história depois de alguns dias, a história não morreu. Duas semanas após as manchetes em Denver, John Lewis notou que um grande jornal do leste dos EUA havia reimprimido a história e incluía informações que não existia na história original. Este jornal incluiu citações de um alto funcionário chinês confirmando a história, com ilustrações e comentários sobre a derrubada do muro.

O jornal Fort Wayne Sentinel alegou que as pedras da muralha iam ser usadas para construir diques e assim conter as inundações do rio Yangtse. Eventualmente, a história se espalhou para jornais de todo o país e depois para a Europa. Embora a história se desenvolvesse em diferentes versões, a essência permanecia: os americanos estavam indo para a China para derrubar a Grande Muralha. Apenas o New York Times de Nova Iorque questionou a autenticidade, e escreveu em seu jornal:

“Se há algo que a China moderna pode se orgulhar, é dessa famosa muralha, tão antiga, tão inútil, tão estranha e tão inconveniente. Como a maioria das outras coisas na China, seu material é tal que impede a ideia de empregá-lo em fazer coisas com ele, como usar na construção de estradas ou diques, e essa é outra razão pela qual o esquema relatado é incrível e incompreensível. E se os chineses decidiram destruir a mais nobre incorporação do instinto e da política chinesa, por que não deveriam eles mesmos fazer isso? Embora atualmente possam não ter a energia necessária para construir um estrutura tão grande e notável, ainda assim eles não teriam dificuldades em destruí-la”. 

Depois de dez anos, o último repórter sobrevivente da farsa, Hal Wilshire, confessou o segredo. Mas a coisa não parou por aí: Em 1939, outra farsa foi criada sobre a falta notícia sobre a derrubada da Grande Muralha da China, quando o compositor de Denver, Harry Lee Wilber, alegou que a fraude de 1899 havia provocado a Revolta dos Boxers de 1900, em um artigo publicado no North American Review. Paul Harvey, um famoso radialista, chegou a transmitiu a história no rádio.

Wilber alegou que a história sobre a derrubada da muralha havia chegado a China, onde enfureceu tanto a população, que desencadeou a revolta – um movimento popular antiocidental e anticristão no país, que custou a vida de 32 mil cristãos chineses e de centenas de missionários ocidentais.

Porém o Levante dos Boxers já existia muito antes do início da farsa dos quatros repórteses. Nenhuma evidência na história escrita sobre a derrubada da muralha correlaciona a fraude com a Rebelião dos Boxers. O embuste de Wilber durou quinze anos, e foi destaque no livro Great Hoaxes of All Time, publicado em 1956 por Robert Medill McBride e Neil Pritchie.

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