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A Guerra das Lagostas entre Brasil e França

O contratorpedeiro da Marinha Francesa Tartu é sobrevoado por um RB-17G da FAB
A Guerra das Lagostas foi um conflito entre o Brasil e a França, ocorrido entre 1961 e 1963, devido à captura ilegal de lagostas por embarcações francesas nas águas territoriais do Nordeste brasileiro. A disputa girava em torno da exploração pesqueira, especialmente a pesca de lagostas, por parte de navios franceses nessa região.

A Guerra da Lagosta, apelidada jocosamente pela imprensa, foi um conflito entre os governos do Brasil e da França entre 1961 e 1963. Este episódio é parte da história das relações internacionais do Brasil e se concentrou na captura ilegal de lagostas por embarcações de pesca francesas em águas territoriais do litoral nordeste brasileiro.

Naquele período, a França havia perdido a maior parte de suas colônias africanas, resultando na perda de áreas marítimas onde tradicionalmente pescava. Com essa diminuição, houve um aumento do interesse dos pescadores de Camaret, na costa noroeste da França, pela região nordeste do Brasil e suas lagostas. Os pescadores franceses enviaram uma delegação para Recife, com a justificativa de realizar pesquisas sobre viveiros de lagosta.

Em março de 1961, uma autorização foi concedida por 180 dias, permitindo a vinda de três embarcações francesas, acompanhadas por representantes da Marinha do Brasil como fiscais. No entanto, os relatórios logo indicaram que não eram três, mas sim quatro embarcações agindo na região. Além disso, ao invés de conduzirem pesquisas, esses barcos estavam pescando de forma descontrolada e planejavam transportar as lagostas para a Europa.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França

A disputa entre Brasil e França se estendeu ao longo de 1962, envolvendo uma disputa diplomática em torno da captura ilegal de lagostas. O Brasil sustentava que as lagostas estavam na zona econômica exclusiva do país, enquanto a França se baseava na Convenção de Genebra de 1958, que estabelecia diretrizes para a pesca em alto-mar, apesar de nenhum dos dois países ter assinado essa convenção.

Durante as negociações para resolver a questão, a França argumentou que as lagostas se deslocavam de um lado para o outro dando saltos, portanto, deveriam ser consideradas como peixes e estavam em águas internacionais; caso andasse, estaria em território brasileiro, uma vez que se admitia à época que o fundo do mar pertencia ao Brasil.

O comandante Paulo de Castro, da Marinha do Brasil, criticou essa argumentação, ironicamente comparando: “Por analogia, se a lagosta fosse considerada peixe quando dá seus “pulos” se afastando do fundo submarino, então teria, da mesma maneira, que ser acatada a premissa do canguru ser uma ave, quando dá seus “saltos”. Essa analogia destacou a fragilidade do argumento francês, enquanto as tensões diplomáticas continuavam entre os dois países devido à pesca ilegal e à disputa sobre a classificação das lagostas como recurso pesqueiro na zona marítima brasileira.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França
Contratorpedeiro Tartu da Marinha Francesa

A situação entre Brasil e França escalou quando o almirante Arnoldo Toscano, em resposta às denúncias dos pescadores pernambucanos sobre a pesca ilegal de lagostas, enviou corvetas da Marinha para escoltar os barcos franceses para fora do território brasileiro. Nesse contexto, o porta-aviões Minas Gerais, uma das principais embarcações da Marinha na época, não foi mobilizado para as águas disputadas, o que gerou críticas do público em relação ao governo.

Enquanto os navios de guerra brasileiros abordavam os barcos franceses de maneira pacífica, os pescadores não cessaram suas atividades ilegais. Em vez disso, pediram ajuda ao governo francês, especialmente à Marinha Francesa, que prontamente respondeu ao chamado.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França
Charles de Gaulle

Nessa época, a França era governada por Charles de Gaulle, um ex-general e herói de guerra conhecido por sua postura nacionalista e conservadora. No terceiro ano de seu mandato como presidente, De Gaulle tomou medidas decisivas, enviando contratorpedeiros (destróieres) e um porta-aviões da classe Clemenceau para o Oceano Atlântico com o objetivo de escoltar os barcos pesqueiros franceses diante da presença dos navios de guerra brasileiros.

Esse movimento evidenciou a escalada do conflito e a intensificação das tensões entre os dois países. Foi nesse episódio que surgiu a frase famosa “O Brasil não é um país sério”, inicialmente atribuída ao presidente francês Charles de Gaulle, que na verdade, teria sido citada pelo embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alves de Souza Filho.

O aumento da tensão entre Brasil e França ficou evidente quando, em 11 de fevereiro de 1963, uma Força-Tarefa liderada pelo porta-aviões Clemenceau partiu de Toulon, na França, acompanhada por três contratorpedeiros, cinco fragatas, um cruzador, um navio-tanque e um navio de aviso. O governo francês justificou essa movimentação como uma missão de rotina no oceano Atlântico. No entanto, um dos contratorpedeiros, o Tartu, seguiu sozinho em direção à costa brasileira, tomando um rumo diferente dos demais navios.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França
Os quatro contratorpedeiros da classe Fletcher, como o Pará (D27), eram os melhores navios da Marinha Brasileira em 1963. Eles foram adquiridos por empréstimo junto aos Estados Unidos e o contrato proibia o uso desses navios contra aliados dos EUA

Assim que o Estado-Maior da Armada (EMA) brasileira tomou conhecimento do deslocamento do navio de guerra francês em direção à costa brasileira, iniciou-se uma busca intensiva pelo navio. Estações Radiogoniométricas de Alta Frequência em Recife e na Bahia foram empregadas para rastrear as emissões eletromagnéticas de todos os navios franceses navegando no Atlântico.

O governo brasileiro respondeu à situação mobilizando um grande contingente da Marinha e da Força Aérea, em uma preparação literal para o combate, no dia 22 de fevereiro, véspera do Carnaval. Durante essa mobilização, os Estados Unidos intervieram, lembrando que as licenças para o equipamento americano usado pelos brasileiros, como os bombardeiros B-17, não permitiam seu uso contra adversários. Esse posicionamento complicou ainda mais a situação, visto que restringiu o uso de certos recursos militares por parte do Brasil em meio à escalada das tensões com a França.

O cenário era tenso quando, em 26 de fevereiro, um avião P-15 da Força Aérea Brasileira (FAB), patrulhando distante da costa, detectou no radar um navio de grandes proporções se aproximando de Fernando de Noronha. No dia seguinte, um bombardeiro B-17, adaptado para reconhecimento, também da FAB, realizou o primeiro reconhecimento fotográfico da embarcação francesa. A partir desse momento, a embarcação francesa passou a ser constantemente vigiada por aeronaves militares brasileiras, tanto de dia quanto de noite.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França
O contratorpedeiro Paraná (D29) foi o primeiro navio da Marinha do Brasil a fazer contato com o contratorpedeiro francês Tartu. O encontro ocorreu no dia 28 de fevereiro de 1963

Segundo relatos descritos por Guilherme Poggio (2011), duas aeronaves voaram em formação aberta e em baixa altitude, mantendo silêncio total e sem luzes visíveis. Utilizando equipamentos de guerra eletrônica, essas aeronaves conseguiram detectar as emissões do radar de busca aérea do Tartu, o contratorpedeiro francês. Ao se aproximar, as aeronaves subiram para cerca de 30 metros de altitude sobre o navio e então acionaram suas luzes, surpreendendo a tripulação, que foi vista correndo para assumir posições de combate.

No contexto desse conflito, o Brasil enfrentou desafios logísticos significativos. O país estava em feriado durante o início do conflito, e grande parte do efetivo militar da Marinha estava de folga devido ao Carnaval. Foi necessária uma convocação maciça e rápida das forças militares, mesmo durante a madrugada do sábado de Carnaval. Além disso, unidades em Recife enfrentavam escassez de munição e combustível, o que complicava ainda mais a situação diante da crescente tensão com a França.

A situação atingiu seu ápice quando uma grande Força-Tarefa de navios de guerra partiu do Rio de Janeiro em direção à capital de Pernambuco. Três dias depois, a Força chegou a Recife, juntando-se a outros reforços de várias partes do país, e no mesmo dia partiu para alto-mar. Toda a imprensa e a população aguardavam ansiosamente o possível encontro entre os navios brasileiros e o navio francês.

A bordo dos navios brasileiros, a tensão era palpável. Navegavam no escuro, com os operadores de radar completamente focados na busca pelo navio inimigo. Na manhã seguinte, por volta das 10 horas, o contratorpedeiro Paraná estabeleceu contato no radar com um alvo na superfície, com as características do Tartu; era ele.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França
O navio aviso Paul Goffeny

A uma distância de 13 quilômetros, o Paraná avistou o navio francês, acompanhado por seis pequenos barcos pesqueiros. O navio brasileiro não estava sozinho, contava com a escolta de mais quatro contratorpedeiros, uma corveta e um submarino. A frota brasileira acompanhou os navios franceses por algum tempo, monitorando suas frequências de rádio, antes de se afastar. A partir dessa localização, foi estabelecida uma escala de patrulha, mantendo sempre um navio próximo dos pesqueiros e outro à distância, prontos para intervir quando necessário.

Para assegurar a posição do Tartu, outro contratorpedeiro, o Paul Gaufeny, foi enviado para a região, totalizando dois navios de guerra e seis barcos de pesca franceses sob vigilância brasileira. Essa ação refletia a tensão e a prontidão das forças brasileiras em responder à presença dos navios franceses na área.

Durante esse período, as negociações diplomáticas e a intervenção dos Estados Unidos e da ONU trabalharam para encerrar o iminente conflito e, consequentemente, evitar a declaração de guerra. O retorno dos navios pesqueiros e dos dois contratorpedeiros franceses à França foi interpretado como um sinal de que o conflito havia terminado, com um último gesto irônico e bem-humorado de “boa viagem” emitido do contratorpedeiro Paraná ao navio Paul Gaufeny.

Em 10 de março de 1963, os franceses retiraram seus navios da costa brasileira, mas a guerra diplomática ainda não havia chegado ao fim. Antes que a situação fosse completamente resolvida, ocorreu o golpe militar no Brasil. Somente durante a ditadura, em 10 de dezembro de 1964, Brasil e França alcançaram uma solução: um acordo permitindo a exploração limitada de lagosta por navios franceses, estabelecendo quantidades e períodos específicos, além da partilha dos lucros obtidos. Finalmente, o conflito de interesses foi resolvido por meio da diplomacia, encerrando uma fase de tensões entre os dois países.

A Guerra das Lagostas entre Brasil e França

Crédito das imagens: www.naval.com.br

Fonte: 1 2

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