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As bibliotecas perdidas de Chinguetti

Desde que o homem descobriu a conveniência de letras e sinais para se comunicar, o hábito da leitura se tornou, muitas vezes, literalmente sagrado – vide a Bíblia, o mais festejado best seller da História. Alimentando religiões, instituindo culturas, os livros foram com o tempo ganhando novas formas, linguagens e significados. Alguns se transformaram em verdadeiras relíquias. Em bem poucos lugares do mundo, no entanto, um livro deve ter tanta importância como na quase ilocalizável Chinguetti.

Chinguetti é uma antiga cidade do centro-oeste da Mauritânia, na região de Adrar, a setenta quilômetros de Atar. Fundada em 777, no século 11 como o centro de várias rotas comerciais que atravessavam o deserto do Saara e se tornando também um centro de estudos religiosos e científicos na África Ocidental. Esta pequena cidade continua a atrair visitantes que admiram sua arquitetura, paisagem e suas bibliotecas antigas, com alguns dos mais raros livros do planeta.

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Crédito da foto

As casas foram construídas com pedras avermelhadas e lama seca, cobertas com folhas de palmeira. As paredes de pedra tem pequenas janelas e portas com caixilhos feitos com madeira de acácia, árvore esse que há muito tempo já desapareceu de toda a região. A maioria dessas casas atualmente estão em ruínas, abandonadas devido a invasão das dunas de areia do crescente Saara, onde milhares de anos atrás era uma ampla savana.

Pinturas que remontam à Idade da Pedra que existem perto de Chinguetti, retratando a região como um oásis de pastagens luxuriantes onde os animais selvagens proliferavam. As mudanças climáticas estão trazendo longos períodos de secas e erosão extrema, provocando a desertificação ambiental, que trazem consigo tempestades de areia mais frequentes e severas. Calcula-se que o deserto do Saara avance para o sul a uma velocidade de cinquenta quilômetros por ano.

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No passado, Chinguetti era uma próspera cidade de 20.000 habitantes e agora menos de 5.000 pessoas moram no paupérrima lugar. À medida que a cidade desaparece lentamente sob a areia, algumas das últimas famílias restantes se agarram desesperadamente ao seu precioso tesouro – uma das melhores coleções de manuscritos islâmicos antigos. A mais importante e rica destas bibliotecas é considerada das mais antigas de todo o Islã, e pertence à família de Mohammed Habbot, com cerca de 1.600 volumes. Muitos desses livros foram escritos em pele de gazela, e protegidos por capas feitas com pele de cabra.

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A cidade era um oásis para as caravanas, que paravam para descansar e para vender suas mercadorias, bem como dar água para seus camelos. Se tornou uma cidade sagrada e um lugar de encontro para os peregrinos incapazes de fazer a longa jornada a caminho de Meca. É dito de Chinguetti é a sétima cidade sagrada do Islamismo.

À medida que milhares de homens cultos passaram pela cidade, o intercâmbio de ideias religiosas, culturais e científicas ocorreu e a reputação da pequena cidade aumentou. O que antes era apenas um ponto de parada no deserto, rapidamente se tornou um destino por direito próprio. Durante séculos, foi um mais importantes centros de estudos multidisciplinares, onde eram estudadas matérias de direito, matemática, ciências, religião, medicina e astronomia.

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Na Europa vivia-se uma era negra e obscura, conhecida como Idade das Trevas, que inibia quem tivesse vontade de estudar e de adquirir conhecimento e onde imperava a lei da religião acima de todas as outras, mas nesse canto da África Ocidental encontravam-se os mais variados pensadores, estudiosos e religiosos. A área em torno da Rue des Savants já foi famosa como um lugar de encontro para tais eruditos debaterem os pontos mais finos da lei islâmica.

Durante muitos séculos, toda a Mauritânia foi popularmente conhecida no mundo árabe como Bilad Shinqit, “a Terra de Chinguetti” e também como a “Cidade das Bibliotecas”. Apesar da decadência e abandono, a cidade continua a ser um dos locais históricos mais importantes do mundo tanto em termos da história do islamismo como da história da África Ocidental.

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Há meio século atrás, havia trinta bibliotecas com volumes antigos e milhares de manuscritos. Agora, apenas cinco dessas bibliotecas privadas sobreviveram e são vigiadas pelas mesmas famílias que passaram esses tesouros literários por gerações. Dispostos em prateleiras abertas e vulneráveis ao clima desértico, estes livros e manuscritos estão literalmente virando pó.

No passado, quando as caravanas foram obrigadas a mudar suas rotas por causa do constante avanço das gigantescas dunas de areia do Saara e a cidade entrando em decadência, um caravana deixou na ainda atraente biblioteca local uma coleção de volumes escrita por um egípcio chamado Abu Hilal Al-Hassan, dono de um currículo obscuro cuja maior proeza era uma coletânea de provérbios árabes. O livro já chegou envolto por um mistério: o autor, que não conhecia e nem depois teve coragem de visitar Chinguetti, só haveria enviado o livro à cidade sob a condição de que ele jamais saísse dali. Ameaçados pela areia e carentes de algumas esperanças, os habitantes passaram a idolatrá-lo como se dele viesse a salvação da cidade.

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Para os ocidentais, o livro não tem nada de interessante. Ou melhor, para os não islamitas, quase nada além da beleza gráfica de suas ilustrações e do seu valor arqueológico – afinal, é um original, totalmente manuscrito, que nunca chegou a ser publicado. Para os iniciados nas ideias do Islã, a coisa já muda um pouco de figura: há comentários sobre alguns versos do Corão, relato de batalhas de Maomé e um mapa da Meca, na Arábia Saudita, sua cidade natal. E só! Não fosse o livro, Chinguetti com certeza já teria sido abandonada.

O governo da Mauritânia vem tentando adquirir esses delicados manuscritos de seus donos, mas as famílias se recusam a se desfazer deles, pois é uma honra para eles mantê-los. “Você se separaria da mão ou do pé? É parte de nós!“, diz Seif Islam, diretor da escola de segundo grau, que tem 700 mil volumes empoeirados em sua coleção.

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Esses dedicados bibliotecários, no entanto, mostrarão ansiosamente sua coleção para qualquer turista curioso o suficiente para vê-los. Estima-se que existem centenas de milhares de textos antigos no país, mas apenas alguns poucos foram recuperados, catalogados e arquivados no Museu Nacional. Em 1996, a UNESCO designou Chinguetti, (cidade e bibliotecas) juntamente com as cidades de Ouadane, Tichitt e Oualata, também na área das dunas do Saara, como Patrimônio Mundial.

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Um antigo Alcorão | Crédito da foto

Uma das soluções para prevenir a deterioração dos manuscritos seria limitar seu contato com a luz e poeira, mas as famílias detentoras dos acervos têm no turismo uma das únicas fontes de rendimento, e sendo que para eles, a subsistência está acima da preservação cultural e em muitos casos, são obrigados a expor seus livros antigos para atrair turistas, mesmo que desta forma os façam deteriorar-se ainda mais. As constantes mudanças climáticas, assim como a turbulência política que assola muitas partes da África Ocidental, incluindo a Mauritânia estão afastando os turistas, pondo em risco a subsistência dos bibliotecários do deserto.

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Um Alcorão com mil anos | Crédito da foto
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Artigo publicado originalmente em novembro de 2017

Fontes: 1 2 3

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