Histórias

Eremitas ornamentais, pessoas como decoração de jardins

A grande maioria das pessoas nem se dão conta da história por trás de alguns objetos que fazem parte de nossos cotidianos. Como aqueles gnomos de cerâmica que decoravam os jardins das casas no passado, e dependendo da região, ainda decoram. Este objeto especificamente têm uma história inusitada que remonta ao século 18, quando a tradição de exibir gnomos nos jardins estava no auge na Europa, principalmente na Inglaterra georgiana, porém no papel do “gnomo inanimado”, uma pessoa real desempenhava esse papel.

Eremitas ornamentais, pessoas como decoração de jardins
Os tradicionais gnomos de jardins

Essa tradição um tanto bizarra, era popular entre os ricos e nobres. Não contentes com os tradicionais ornamentos inanimados de jardins, como estátuas, bebedouros de pássaros, fontes e outros, a burguesia contratavam pessoas reais, para viverem como eremitas em pequenas cabanas ou grutas construídas para tal, chamadas eremitério.

Um dos termos para ser contratado como um eremita, era fazer aparições programadas nos gramados, vestidos como monges ou druidas, para o prazer do proprietário e seus convidados. Muitas vezes, tais pessoas eram usadas como oráculos. Eles eram conhecidos como “eremitas de jardim” ou “eremitas ornamentais“.

Eremitas ornamentais, pessoas como decoração de jardins
Um eremitério em Craigieburn, na Escócia do livro de Gordon Campbell | Crédito da foto

Soa realmente bizarro, mas por um tempo nos séculos 17 e 18, contratar uma pessoa para parecer espiritual e misterioso em sua propriedade era o sonho de consumo dos ricos proprietários de terras inglesas, uma forma extravagante de exibir sua riqueza aos demais, provavelmente também ricos, mas não tanto quanto ele.

Este eremita se encaixava perfeitamente nos jardins de estilo inglês da época, que celebrava uma aparência mais naturalista do que os jardins altamente estilizados e organizados que eram populares na França. Em algum lugar da propriedade, você encontraria um humilde morada onde o dono da casa poderia se retirar para ficar sozinho com seus pensamentos. Mas se o dono fosse rico o bastante, poderia simplesmente contratar um homem para se vestir como druida, morar na casa e filosofar sobre os méritos da solidão.

Eremitas ornamentais, pessoas como decoração de jardins
Ilustração francesa de um eremita, 1742 (óleo sobre tela) por Boucher, François, Museu Pushkin, Moscou

Os eremitas de jardins eram geralmente contratados por meio de anúncios em jornais, nos quais, já constavam os termos gerais do contrato. A duração do mesmo, frequentemente era de cinco a sete anos, durante os quais os eremitas eram obrigados a viver de maneira simples em uma pequena cabana, ou em uma gruta construída dentro da propriedade.

Os eremitas contratados não tinham permissão para tomar banho, cortar o cabelo, barba ou as unhas, para assim, representar da melhor maneira possível, alguém que vivesse em condições precárias. Também não poderiam ir além dos limites da propriedade ou conversar com os outros empregados. Era uma vida extrema de pobreza e isolamento.

Aos ermitões, eram fornecidos comodidades básicas, como comida, água, roupas, uma cama feita de feno, uma Bíblia e em alguns casos, uma esteira para a prática da meditação e uma ampulheta para ser usada como relógio. No final de seu contrato, eles receberiam um pagamento substancial em libras e em muitos casos, teriam que se comprometer em não exercer a mesma função novamente para outra pessoa.

Eremitas ornamentais, pessoas como decoração de jardins
Eremitério no Castelo de Taymouth, na Escócia | Crédito da foto

Se supõem que, com termos como esses, os proprietários de terra deveriam receber muitos pedidos de vagabundos e desabrigados, atrás de comida e hospedagem grátis e ainda, serem pagos por isso. Mas o fato é que os eremitas de jardins eram surpreendentemente difíceis de conseguir. Primeiramente havia o interesse específico em idosos com barba longa e branca. Depois a vida de solidão que eles eram obrigados a levar e o absoluto abandono da higiene pessoal eram talvez por demais para aqueles que buscavam ganhar comida e hospedagem grátis. A escritora Edith Sitwell em seu livro English Eccentrics, publicado em 1933, descreve um caso:

Charles Hamilton (1704-1886), o filho mais novo do Conde de Abercorn, era um admirador da singularidade e do silêncio, publicou um anúncio com condições parecidas a descrita acima para sua propriedade em Pains Hall, perto de Cobham, em Surrey. Uma das condições era que o prazo de contrato seriam de sete anos, onde o ermita receberia setecentas libras e se houvesse desistência antes disso, a pessoa não receberia nem um centavo. O primeiro eremita ornamental que ele empregou, durou apenas três semanas, antes de ser visto embriagado no pub local.

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Eremitério em Wakworth na Inglaterra. Crédito da foto | A direita, ilustração deste eremitério. Crédito da imagem

Além de vagabundos, a propaganda de eremitas de jardins também atraiam pessoas genuinamente interessadas em busca de um local para meditação, reflexão e isolamento. O excêntrico capitão britânico, Philip Thicknesse, viveu como eremita por algum tempo, antes que a propriedade onde havia sido empregado fosse vendida. Em suas memórias, Philip observou que:

“A duplicidade da humanidade e a saciedade de prazeres tendem a mostrar que mesmo as cenas esplêndidas, que cercam os palácios de riqueza e grandeza, nunca são consideradas completas, a menos que sejam marcadas por algum cuidado obscuro e a morada de uma ancoragem imaginária.”

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Johann Baptist Theobald Shmitt: Eremita em Flotbeck, Alemanha no final do século 18 | Crédito da imagem

Philip mesmo sendo uma pessoa de posses, seguiu com sua vida excêntrica, de algum modo se tornando um verdadeiro eremita. Quando questionado, comentou: “Eu obtive aquilo que todo homem almeja, mas poucos adquirem; solidão e aposentadoria verdadeira“.

De acordo com o professor e historiador Gordon Campbell, da Universidade de Leicester, essa tradição pode ter iniciado no Império Romano. Segundo ele, o imperador Adriano construiu um pequeno eremitério para seu uso pessoal, na sua vila em Tivoli, que incluía um pequeno lago. Alguns séculos mais tarde, o Papa Pio IV seguiu o exemplo, criando o seu próprio refúgio para meditação e reflexão. De alguma forma, ao longo dos anos, essa ideia se transformou no mais estranho esquema de decoração da história.

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Crédito da foto
São Francisco de Paola

Gordon Campbell também sugere que São Francisco de Paola (1416-1507) pode ter sido o primeiro “eremita ornamental” quando escolheu morar em uma caverna isolada na propriedade de seu pai, no século 15. Seus pais eram pessoas extremamente piedosas, no entanto, São Francisco de Paola (em homenagem a São Francisco de Assis) demonstrava inclinações religiosas antes do tempo que passou como eremita naquela caverna.

Talvez sua estada lá tenha despertado a imaginação de algum nobre que ficou encantado com a ideia de um eremita em suas terras e que, por acaso, não tinha um filho religioso, então contratou alguém para desempenhar o papel.

A prática mais tarde se espalhou por toda a Inglaterra, Irlanda e a Escócia, e até certo ponto, para o resto da Europa também. Gordon Campbell publicou um livro intitulado The Hermit in the Garden: From Imperial Rome to Ornamental Gnome em parceria com a Oxford University Press e é o primeiro livro a mergulhar na história dos eremitas ornamentais na Inglaterra georgiana.

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John Bigg, o eremita Dinton | Crédito da imagem

Um dos mais famosos eremitas da era georgiana era o padre Francis, que morava no Parque Hawkstone, em Shropshire, em um eremitério feito com paredes de pedra e um telhado de palha e servia como oráculo aos visitantes. A atração tornou-se tão popular que a família Hill, proprietária do parque, construiu seu próprio pub, o The Hawkstone Arms, para atender a todos que procuravam por Francis. Por catorze anos, ele desempenhou o papel até sua morte. Tinha uma barba longa e branca e sempre era visto com uma ampulheta em uma das mãos e muitos diziam que era a personificação do alquimista Giordano Bruno.

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Nem todos os nobres tiveram a sorte de ter um eremita como o padre Francis. Muitos se esforçaram para encontrar um. Quando os anúncios de jornais que buscavam pessoas para o cargo não surtia efeito, alguns procuravam novas soluções, como ter uma cabana ou gruta que mais parecia a casa de algum alquimista, cheia de livros e objetos bizarros e manequins e bonecos animados posicionados em lugares estratégicos, para que os convidados pudessem ver a silhueta e ter a certeza de que o jardim estava sendo devidamente contemplado.

Quando o padre Francis morreu, a família Hill substituiu-o por uma automação que aparentemente se movia e falava. De acordo com Gordon Campbell, essa prática de usar eremitas falsos pode ter levado diretamente a um enfeite de jardim que ainda vemos hoje: o gnomo de jardim. A moda dos eremitas ornamentais durou cerca de duzentos anos, antes de desaparecer, porém não definitivamente.

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Em 2016, um policial aposentado chamado Michael Dunn tornou-se um eremita na cidade suíça de Solothurn. Seus deveres incluem cuidar de uma capela próxima e fornecer sabedoria a qualquer visitante curioso. Ganhava 24 mil dólares por ano, além de hospedagem e alimentação.

Na Áustria, um ex-oficial de artilharia belga chamado Stan Vanuytrecht aposentado e divorciado, conseguiu o que descreve como seu “emprego dos sonhos”: rezar, conversar com os visitantes e apreciar a vista de um eremitério de 350 anos, sob uma colina, sem eletricidade, sem internet e maiores confortos. Para conseguir tal emprego, teve que superar outros cinquenta candidatos. Seu antecessor foi um monge beneditino que viveu no local por doze anos. Vídeo abaixo, Stan Vanuytrecht comentando de seu emprego dos sonhos, em inglês.

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Fontes: 1 2 3 4

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