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Fordlândia: A utopia de Henry Ford na floresta Amazônica

Caixa d'água e Escritório Central de Fordlândia, em Setembro de 2010

Inúmeras narrativas oferecem cenários incríveis, seja para um thriller de terror ou até mesmo para um hipotético jogo à la Far Cry. Por exemplo, as intrigantes sagas recentes envolvendo um profeta canibal de Papua Nova Guiné, que ergueu seu próprio culto e uma fortaleza nas alturas das montanhas. Ou a fascinante história da República de Fiume, cuja economia florescia graças à pirataria aérea e ao comércio de cocaína. Entre essas narrativas, destaca-se a cidade distópica de Fordlândia, erguida por ordem de Henry Ford em meio à densa selva do Brasil.

Neste caso específico, encontramos de tudo um pouco: um visionário ensandecido que almejava construir seu paraíso pessoal, indivíduos rebeldes brandindo facões, experimentos sociais distópicos e uma atmosfera desoladora que ecoa um cenário pós-apocalíptico.

Fordlândia: A utopia de Henry Ford na floresta Amazônica
Henry Ford

Henry Ford era um visionário que se via como um messias industrial, deixando marcas peculiares em suas empresas. Em suas instalações, uma placa exibia a frase marcante: “Lembre-se que Deus criou o homem sem peças sobressalentes!” Essa citação era emblemática e simbolizava a visão de Ford sobre a criação e o potencial humano. Aldous Huxley, em “Admirável Mundo Novo”, ironiza a figura de Ford e suas tentativas messiânicas. No mundo fictício, as pessoas fazem o sinal da cruz em forma de T, em homenagem ao modelo de carro Ford T, contando os anos desde sua produção e usando a expressão “pela Ford” ao invés de “por Deus”.

Ford foi um ícone à frente de seu tempo, comparável a figuras como Steve Jobs e Elon Musk. Ele acreditava que suas fábricas não apenas impulsionariam uma nova economia, mas moldariam uma nova persona: um trabalhador sóbrio, dedicado e avesso aos excessos da era, almejando apenas o sucesso laboral em nome de um líder carismático. Ele buscava criar um ambiente de trabalho moral e produtivo, chegando ao ponto de monitorar a conduta moral de seus funcionários, inclusive fora do horário de trabalho, e punindo financeiramente comportamentos considerados “imorais”.

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Para Ford, os carros eram apenas um subproduto de seu verdadeiro empreendimento: a formação de indivíduos. Ele sonhava em estabelecer um estado dentro do estado e experimentou diversos projetos, como no Alabama e Tennessee, mas enfrentou dificuldades devido à falta de isolamento social. Sua empreitada mais excêntrica foi a criação de Fordlândia, uma cidade no deserto amazônico. Essa utopia pretendia gerar cidadãos ideais, mas acabou sendo um fracasso. Entre as palmeiras e macacos, restam apenas ruínas de um subúrbio americano, casas cercadas por cercas brancas e um campo de golfe, testemunhos silenciosos de um sonho desvanecido no coração da selva brasileira.

A escolha do Brasil como local para Fordlândia foi estratégica. No final dos anos 1920, as empresas Ford estavam em busca de borracha para o novo carro, o Modelo A. No entanto, o mercado estava sob o domínio da Grã-Bretanha, que havia dominado o cultivo da seringueira no Ceilão. Ford vislumbrou uma solução dupla: estabelecer sua própria produção de borracha e experimentar um simulador de planejamento urbano com uma população real.

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Além disso, o Brasil enfrentava momentos de estagnação naquela época. Incapaz de competir com a Grã-Bretanha na produção de borracha, as cidades que surgiram em torno da extração do látex da seringueira estavam se esvaziando. Os trabalhadores migravam pelo país em busca de oportunidades, muitas vezes sem rumo definido. Ford, impulsionado por seu messianismo e visão grandiosa, também se via como um potencial salvador do Brasil, buscando não apenas suprir a demanda de borracha para seus carros, mas também reanimar uma região e uma economia em declínio.

A escolha do local para Fordlândia foi ousada: em 1926, os representantes legais da Ford adquiriram 14 mil quilômetros quadrados de terra às margens do rio Tapajós, no município paraense de Aveiro, situado no epicentro da inacessibilidade na América do Sul. Essa área representava um dos locais mais remotos do continente, afastado da civilização e dos principais centros de transporte. Surpreendentemente, essa extensão de terra foi comprada por 125 mil dólares, valor que, posteriormente, foi descoberto ser significativamente superior ao seu preço real, indicando um possível lucro para alguém envolvido no negócio.

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A construção de Fordlândia teve início em 1928, com a escolha de um topo de morro para a colônia, visando protegê-la de inundações. Essa decisão, no entanto, trouxe desafios significativos, especialmente em relação ao fornecimento de materiais de construção e alimentos, já que a região enfrentava problemas de acesso devido à dificuldade de navegação do rio Tapajós, que só se tornava navegável durante o período chuvoso. Einar Oxholm, um norueguês, foi designado por Ford para organizar a colônia.

No entanto, sua permanência foi breve, mal tendo tempo para estabelecer as bases necessárias. Após Oxholm, sucederam-se vários outros comissários ao longo dos anos, cada um enfrentando desafios diversos ou mostrando incompetência, levando à instabilidade na gestão da colônia.

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A utopia mais triste

Realmente, a história turbulenta de Fordlândia teve seus momentos notáveis. Um dos administradores designados por Ford, Archibald Johnston, conseguiu imprimir uma nova forma à colônia. Sob sua gestão, surgiram modernos hospitais, escolas, bibliotecas e instalações como geradores elétricos, uma serraria, além de infraestrutura básica como caixas d’água e um farol.

Este farol, em particular, simbolizava as ideias de Ford que buscavam trazer luz e progresso para uma região remota e desafiadora, uma metáfora das tentativas de trazer ordem e modernidade para uma selva até então considerada inexplorada e sem uso aparente. A iniciativa de Johnston trouxe avanços significativos para a Fordlândia, apesar dos obstáculos e das dificuldades que permeavam a empreitada.

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A segregação dos benefícios em Fordlândia foi notável. A “Vila Americana”, onde residiam os profissionais norte-americanos com suas famílias, desfrutava de água corrente e vistas panorâmicas, contrastando nitidamente com a área onde a maioria dos trabalhadores brasileiros vivia, em um padrão mais modesto mais abaixo na colina. A colônia, em sua aparência, buscava reproduzir um subúrbio americano idealizado, embora nos Estados Unidos o movimento conhecido como o “grande êxodo branco” para os subúrbios estivesse apenas começando. Nesse sentido, Henry Ford estava à frente da tendência por cerca de 20 anos.

Entretanto, a vida em Fordlândia era extremamente monótona e restrita. Para moldar trabalhadores ideais, Ford impôs proibições estritas ao álcool, tabaco e até mesmo à presença feminina, exceto para as esposas dos gestores. Atividades como futebol e danças modernas foram proibidas, enquanto noites de poesia e valsas eram obrigatórias para todos os trabalhadores. O entretenimento “admitido” se limitava a livros, porém, todos eles eram moralizantes e desprovidos de qualquer sabor ou profundidade, em prol do suposto bem coletivo.

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As condições adversas em Fordlândia não se limitavam apenas às restrições e à segregação, mas também envolviam questões de saúde, como deficiências de vitaminas, icterícia e malária, entre outras doenças. Diante desses desafios, como os trabalhadores lidavam com o estresse nessas condições? Muitos deles, de fato, não o enfrentavam passivamente. Houve manifestações de rebelião, às vezes abertas e outras vezes mais secretas.

As dificuldades enfrentadas por esses trabalhadores levaram a um sentimento de insatisfação e descontentamento, resultando em diversas formas de resistência. Alguns expressaram sua frustração e revolta de maneira aberta, desafiando abertamente as regras e imposições da administração. Outros optaram por resistir de forma mais discreta, encontrando maneiras de contornar as restrições e as imposições de Ford.

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Essas manifestações de resistência podem ter ocorrido por meio de pequenos atos de rebeldia, como descumprimento das proibições impostas ou envolvimento em atividades consideradas proibidas, bem como por meio de formas mais organizadas de protesto ou resistência coletiva. Em suma, diante das condições adversas, os trabalhadores em Fordlândia não aceitaram passivamente as restrições e frequentemente buscaram maneiras de desafiar as imposições impostas a eles.

Revolta de Quebra-Panelas

Os relatos sobre Fordlândia destacam uma série de descontentamentos e revoltas desde o início. A insatisfação surgiu rapidamente entre os habitantes locais e os administradores americanos, que não se adaptaram às práticas impostas, como o uso de distintivos, consumo de hambúrgueres e dança de valsa. Além disso, o desafio climático e a ameaça persistente da malária complicaram ainda mais a situação. Esses conflitos levaram a motins e episódios de esfaqueamentos, que se tornaram ocorrências comuns na região.

O primeiro motim aconteceu mesmo antes do início efetivo da construção de Fordlândia. Os construtores enviados para desenvolver a colônia se depararam com um cenário desolador: encontraram apenas um morro parcialmente nivelado por lenhadores, sem infraestrutura adequada. Além disso, os alimentos transportados não resistiram à viagem e apodreceram. Esse cenário caótico resultou em um conflito violento, quase fatal para alguns envolvidos. Esse incidente, no entanto, foi apenas o prelúdio para uma série de desafios e tumultos que se seguiriam.

Fordlândia: A utopia de Henry Ford na floresta Amazônica
Vista aérea de Fordlândia em 1934. Esta imagem foi feita pela Ford Company

A frustração e o desespero aumentaram quando se percebeu que todos os anos de esforços na Fordlândia, de 1928 a 1934, foram completamente em vão. A plantação, o cerne da empreitada, não produziu sequer uma gota de borracha. Os gestores da Ford demonstraram total falta de conhecimento sobre o cultivo da seringueira Hevea brasiliensis: as árvores foram plantadas muito próximas umas das outras, resultando em um crescimento atrofiado. Esse erro levou à infestação da plantação por fungos e ácaros, acabando por destruir toda a plantação.

Imagina-se a desolação de chegar a um local remoto no meio da selva sem entretenimento, companhia ou mesmo um trabalho significativo – apenas para testemunhar a morte gradual de todo o esforço em plantar as árvores de seringueira. Esse cenário desolador levou os trabalhadores a se rebelarem contra o regime estabelecido. Inicialmente, as manifestações de insatisfação eram clandestinas: contrabandeavam álcool, cigarros, cartas e outros itens proibidos para a cidade. No entanto, a vigilância era constante, com espiões patrulhando Fordlândia em busca de violações. A tensão chegou a tal ponto que confrontos físicos entre os próprios trabalhadores tornaram-se comuns nesse suposto “paraíso espiritual”.

Fordlândia: A utopia de Henry Ford na floresta Amazônica
Fordlândia. Desembarque no Tapajós e antiga fábrica de borracha

A “Ilha da Inocência”, uma cidade paralela construída pelos trabalhadores a cerca de 8 quilômetros rio abaixo de Fordlândia, se tornou um reino de anarquia. Era um local fora da jurisdição controlada pela Ford, composto por bares, bordéis, casas de jogos improvisadas e uma atmosfera onde o álcool fluía livremente, assemelhando-se a um reduto pirata. Foi nesse ambiente que começaram os conflitos que mais tarde se espalharam para Fordlândia.

Em 1930, ocorreu o levante mais significativo na história de Fordlândia. O estopim foi na cantina, devido à insatisfação dos trabalhadores brasileiros com a alimentação monótona, descrita pejorativamente como “comida branca”. Eles exigiam uma diversificação do cardápio. O conflito surgiu entre o supervisor Kai Ostenfeld e o pedreiro Manuel Cayetano. O embate evoluiu rapidamente para uma briga intensa, na qual tanto os americanos quanto os brasileiros pegaram qualquer objeto que puderam encontrar e começaram a se agredir violentamente. Os manifestantes gritavam “Quebra-Panelas!” como um lema, expressando seu descontentamento e protesto. Este evento marcou um ponto crucial de ruptura, simbolizando a crescente tensão e desordem que tomavam conta da comunidade de Fordlândia.

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A revolta se estendeu por vários dias, marcada por uma atmosfera de caos e violência. Trabalhadores armados com facões cortaram fios telegráficos, destruíram geradores, edifícios públicos e até suas próprias residências durante o levante. Gerentes e funcionários foram levados para a selva enquanto a liderança de Fordlândia conseguiu escapar por navio.

Para conter a rebelião, Henry Ford precisou solicitar a intervenção do magnata das companhias aéreas, Juan Trippe, para transportar soldados do exército brasileiro até o local do confronto. Somente a chegada desse grupo de desembarque conseguiu evitar a destruição completa da colônia. A intervenção militar foi crucial para acalmar os ânimos e restabelecer algum tipo de ordem em meio à agitação generalizada que tomou conta de Fordlândia durante esse período turbulento.

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Como tudo acabou

O projeto comercial de Fordlândia, desde seu início, parecia fadado ao fracasso. Henry Ford investiu um total de 20 milhões de dólares nesse empreendimento (equivalente a mais de 200 milhões nos dias de hoje), mas não obteve um centavo de receita em retorno. As terras da colônia revelaram-se inadequadas para o cultivo da seringueira, e a falta de conhecimento sobre o cultivo dessa planta, somada à infestação de fungos, resultou na completa destruição da plantação. Até mesmo a madeira cortada durante o processo de limpeza do terreno acabou sendo inútil e sem valor econômico.

Na tentativa de resolver esses problemas, a Ford Motor Company buscou a ajuda do renomado botânico James R. Ware. No entanto, Ware, após dar uma breve olhada na área e fornecer alguns conselhos, que acabaram sendo considerados ineficazes ou inadequados, partiu repentinamente sem anunciar sua saída, deixando para trás uma situação ainda mais complicada e sem solução aparente para os desafios enfrentados em Fordlândia.

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A história pós-Fordlândia revela um declínio rápido da colônia que, em 1934, já abrigava 10 mil pessoas. E nesse ano, Fordlândia foi abandonada pela Ford, e o projeto foi transferido rio abaixo para Belterra, 40 quilômetros ao sul da cidade de Santarém, onde existiam melhores condições para o cultivo da borracha.

Em 1945, a borracha sintética foi desenvolvida, reduzindo a demanda mundial por borracha natural. A oportunidade de investimento da Ford secou da noite para o dia sem produzir nenhuma borracha para os pneus da Ford, e a segunda cidade também foi abandonada. Apesar do enorme investimento e dos inúmeros convites, Henry Ford nunca visitou nenhuma de suas malfadadas cidades.

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Henry Ford II, herdeiro de Ford, optou por vender as empresas não lucrativas de seu avô, sendo Fordlândia uma das primeiras a ser leiloada. Gradualmente, tornou-se uma cidade fantasma, habitada por apenas 90 pessoas. No entanto, ao longo de décadas, esse lugar começou a ser repovoado. Cerca de três mil brasileiros agora residem lá, embora suas atividades não estejam claramente definidas.

A ausência de serviços médicos, infraestrutura básica e oportunidades de trabalho legítimas permanece uma preocupação. A “Ilha da Inocência”, em certo sentido, pode ter sobrevivido aos destroços de Fordlândia, com uma comunidade se reestabelecendo na região, apesar das condições desafiadoras e da falta de recursos e suporte institucional.

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