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As rochas esculpidas de Rothéneuf

Em 1879, na pequena cidade do sudeste da França chamada Châteauneuf-de-Galaure, um carteiro deu início à construção de um incrível palácio, que levou impressionantes 33 anos para ser concluído. O resultado dessa empreitada extraordinária agora é conhecido como Palais Cheval, em homenagem ao seu dedicado construtor.

Cerca de 15 anos mais tarde e em outro extremo do país, na costa da Bretanha, um abade chamado Padre Fouré embarcou em uma jornada igualmente surpreendente. Ele deu início à criação de um conjunto de esculturas à beira-mar, conquistando o apelido carinhoso de Cheval Bretão. Essas duas notáveis obras, o Palais Cheval e as esculturas do Cheval Bretão, destacam-se como testemunhos do extraordinário zelo e talento dedicados por indivíduos à materialização de visões únicas e grandiosas.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Adolphe Julien Fouéré. 
Foto: 
rochersrotheneufartbrut.com 

Seu verdadeiro nome era Adolphe Julien Fouéré, e ele foi ordenado sacerdote em 1863. Dedicou-se ao serviço em várias paróquias até que, em 1894, um problema vascular comprometeu significativamente sua audição, levando-o a se aposentar. Em busca de refúgio, escolheu a pacata aldeia de Rothéneuf, situada cerca de cinco quilômetros a nordeste de Saint-Malo. Essa localidade, também conhecida como a cidade natal do explorador Jacques Cartier, tornou-se o cenário para a próxima fase da vida desse notável sacerdote.

Sem possuir qualquer conhecimento artístico prévio, ele desenvolveu um interesse apaixonado pela escultura. Seu trabalho emergiu dentro do contexto da incipiente Art Brut, que se caracteriza pela produção artística alheia às normas da cultura oficial. Além disso, demonstrou um fascínio pelo primitivismo, pelo exótico e pela estética ingênua.

Entre os anos de 1894 e 1907, ele dedicou-se a esculpir uma variedade impressionante de obras em madeira. Sua casa, transformada em uma espécie de museu, estava aberta para qualquer visitante apreciar suas criações. Durante esse período, suas esculturas abrangiam desde totens até representações de figuras políticas contemporâneas, santos, seres mitológicos e animais. A peculiaridade de seu trabalho residia na habilidade de adaptar o formato geral das esculturas à própria forma das peças de madeira que esculpia. Esse período foi marcado por uma produção artística diversificada e acessível a todos que se aventurassem a visitar sua casa-museu.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Foto: Infernal Quack/Wikimedia

Sem dúvida, sua obra mais renomada compreende as mais de 300 esculturas que esculpiu diretamente nas rochas graníticas ao longo da Costa Esmeralda (Côte d’Émeraude), formando uma monumental exposição ao ar livre sujeita à erosão marinha.

Esse conjunto abrange tanto figuras autônomas quanto, predominantemente, baixos-relevos, que Fouré enriqueceu com cores vibrantes, conforme suas próprias escritas, predominantemente em tons como azul, amarelo claro, bordô e chocolate. Para realçar os contornos, ele aplicou alcatrão às esculturas.

As obras representam não apenas figuras fantásticas provenientes de sua imaginação, mas também refletem suas leituras de história e geografia, bem como eventos contemporâneos relatados nos jornais. Entre as inspirações, destacam-se referências à Primeira Guerra dos Bôeres na África Austral, ao trabalho dos missionários nas colônias francesas e a cenas evocativas de lugares distantes como China, Rússia ou Japão. Essa vasta gama de temas demonstra a amplitude da influência que moldou o impressionante conjunto esculpido ao longo da esplêndida Costa Esmeralda.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Foto: Bernd Brägelmann/Wikimedia

Entre os inúmeros personagens que povoam suas esculturas, destaca-se o lendário santo irlandês São Budoc de Dol, cuja trajetória culminou na Finisterra francesa e é representado duas vezes, incluindo uma escultura em seu túmulo. Jacques Cartier, o primeiro explorador francês nas Américas, é um tema recorrente não apenas nas rochas, mas também em algumas esculturas de madeira.

Outras figuras notáveis entre as esculturas incluem Cleópatra, Napoleão, o Imperador Faustino do Haiti, a Rainha Behanzin do Daomé, a Rainha de Saba, a Rainha Vitória, Merlim e Gargântua. A diversidade de personagens que podem ser identificados entre as esculturas é impressionante, abrangendo tanto figuras históricas quanto míticas.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Foto: Fanoflesage/Wikimedia

A cada inverno, Fouré dedicava-se à restauração das esculturas, realizando a limpeza e repintura, preparando-as para receber os visitantes na temporada de verão. A antecipação era tamanha que, em 1896, a cidade de Saint-Malo inaugurou uma linha de bonde especialmente para acomodar o grande influxo de turistas que vinham apreciar as esculturas nas rochas, testemunhando assim a notável popularidade e atração que o trabalho de Fouré exercia sobre o público.

Em 1907, uma paralisia que afetou não apenas seu corpo, mas também sua fala, forçou Fouré a interromper praticamente todas as suas atividades, incluindo a escultura. Três anos após esse trágico evento, em 10 de fevereiro de 1910, Fouré faleceu, enquanto Ferdinand Cheval, com quem havia sido comparado, ainda estava a dois anos de concluir seu famoso Palais Idéal.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Foto: Michel Lefrancq/Wikimedia

Nos anos subsequentes, o trabalho de Fouré continuou a atrair a atenção e a curiosidade, levando muitos visitantes a Rothéneuf para contemplar as estranhas esculturas nas rochas da costa. Em 1925, o local registrava incríveis 80 mil visitas anuais, e em 2012, ainda recebia aproximadamente 40 mil visitantes por ano.

Infelizmente, ao longo do tempo, as obras em madeira desapareceram, e hoje o paradeiro de nenhuma delas é conhecido. As esculturas nas rochas à beira-mar também começaram a deteriorar-se, perdendo toda a policromia. A ação da água do mar, do salitre e das intempéries as corroem a ponto de correrem o risco de desaparecer.

As rochas esculpidas de Rothéneuf
Foto: Gilles San Martin/Wikimedia

Desde 2010, uma associação de amigos da obra do Padre Fouré empenha-se na preservação de sua memória. Realizando exposições, visitas guiadas e trabalhos de manutenção nas esculturas, a associação busca manter viva a herança artística e única deixada por esse notável escultor, contribuindo para a apreciação e compreensão de seu legado.

Documentário de 52 minutos produzido para a TV Breizh sobre a vida do Abade Fouéré, padre-escultor do final do século XIX na Bretanha. Produção: Fred Daudier e Olivier Gouix, março de 2002.

Fonte: 1

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Movido por uma curiosidade insaciável, ansiava por um espaço onde pudesse preservar as curiosidades singulares que encontrava em livros e na internet. Dessa busca, surgiu o Magnus Mundi em 2015. Julio Cesar, nascido em Blumenau e residindo em Porto Belo, litoral de Santa Catarina, viu seu desejo de compartilhar maravilhas peculiares tomar forma nesse site.

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